Teoria  |  Extratos de Mulheres, casas e cidades – Zaida Muxí Martínez
1/1

O último livro de Zaida Muxí Martínez, do qual publicamos dois extratos dos capítulos 1 e 6, propõe uma releitura da história da arquitetura e do urbanismo a partir das contribuições realizadas por mulheres que foram silenciadas pelas correntes históricas mais tradicionais. O livro se centra no entorno habitado, do design à política, da arquitetura ao urbanismo; tudo isto sintetizado na casa e na cidade, como representações do público e do privado. A casa como metáfora da arquitetura. A cidade como síntese das ações humanas.

Título  Mulheres, casas e cidades. Para além do umbral
Autora  Zaida Muxí Martínez
Editorial  dpr Barcelona
Corretor  Daniel Lacasta Fitzsimmons
Design Gráfico  Francesc Polop
Idioma  Espanhol
Formato  13 x 21 cm, capa rústica
Páginas  336
Edição  Outubro de 2018

CAPÍTULO 1.
INTRODUÇÃO

[…]
Por que casa e cidade?

Este livro sobre as contribuições das mulheres para a arquitetura se centra em duas escalas fundamentais: a casa como imagem da arquitetura e a cidade como a do urbanismo. A casa é o lugar da primeira socialização e é também o lugar onde são desenvolvidas as primeiras relações entre gêneros. O espaço não é neutro e, portanto, a maneira em que se divide, articula-se e se hierarquiza influi diretamente no desenvolvimento das relações e das pessoas que o habitam.

Poderíamos afirmar que, como em tantas outras esferas da nossa vida cotidiana, o espaço doméstico teve poucas variações, porque as relações profundas que o marcam não variaram. É um espaço no qual são consideradas óbvias e imutáveis certas caraterísticas essenciais, como a distribuição em espaços estagnados e, geralmente, monofuncionais. Os espaços destinados às atividades domésticas, como a cozinha e a área de serviço, não são questionados, nem nas suas dimensões, nem na sua organização e nem, obviamente, na sua existência individual. O surgimento de novas tecnologias e eletrodomésticos para as atividades cotidianas produziu a especificação dos usos e promoveu um maior consumo, mas não modificou substancialmente as marcas caraterísticas do espaço. Por sua especificidade, muitos dos novos equipamentos domésticos criados para dar solução a problemas específicos terminam consumindo mais tempo e gerando mais trabalho e mais resíduos(1). A casa continua sendo o lugar de ócio e descanso para alguns e, ao mesmo tempo, para a maioria das mulheres se trata de um lugar a mais de trabalho. Segundo Cristina Brullet, os usos do tempo, interpretados como a experiência objetiva e subjetiva que outorgam organização para as atividades da vida cotidiana, transformaram-se em uma espécie de medida da desigualdade. A pesquisa social europeia revela que, em todos os seus países, o tempo dedicado às atividades da vida diária  se reparte de forma desigual e desequilibrada entre homens e mulheres(2). Para Simone de Beauvoir, poucas atividades são mais parecidas à tortura de Sísifo do que as atividades do lar, com a sua repetição sem fim: o limpo se transforma em sujo, o sujo é limpo, e assim sucessivamente, dia após dia(3).

Mas não nos referimos somente ao lar como lugar das tarefas intermináveis, e que é fundamentalmente responsabilidade das mulheres, mas também como lugar em cuja articulação e distribuição espacial se repetem os papéis mais hierárquicos e inamovíveis. O espaço doméstico repete as estruturas rígidas e hierárquicas da família nuclear patriarcal. As novas tecnologias no lar comportam o aparecimento de um novo lugar de trabalho-ócio na casa, articulado geralmente em torno ao computador que, embora possa ser compartilhado, conforma-se, na maioria dos casos, como um espaço majoritariamente masculino(4).

Mudar a forma na qual foi concebida tradicionalmente a distribuição do espaço da casa não é tarefa fácil, pois são ideias, conceitos e formas que incorporamos à nossa mente antes de ser conscientes. As casas respondem a mentalidades que são de longa duração:

É a esposa quem assume a carga de vigiar o interior […] e quem controla a casa, que não é nada mais do que um sistema aninhado de espaços fechados, cada um com uma porta […] A ‘regra da casa’ que ela aplica não é nada mais que a lei do próprio lugar: ‘cada coisa no seu lugar’. Alberti segue fielmente a descrição que Jenofonte faz de ‘treinamento’ da garota–namorada para se converter em esposa, que consiste em guiá-la por toda a casa em um itinerário de inspeção, no qual identifica o ‘lugar apropriado’ para cada possessão […] Os espaços estão classificados. […] “Tudo está disposto  organizadamente, não no primeiro lugar que se encontre, mas naquele ao qual pertence naturalmente” (Jenofonte,Oeconomicus, S.V). Há uma relação ‘natural’ entre os sistemas de classificação, o espaço e o que se está classificando. A esposa aprende o seu lugar ‘natural’ quando aprende o lugar das coisas. Fica ‘domesticada’ mediante a interiorização da mesma organização espacial que a mantém enclausurada. […] novo sentido da privacidade em que se redefinem os espaços da casa em uma organização complexa de espaços estratificados e subdivisões de espaços que concebem uma organização social literalmente marcada pelas linhas entre as hierarquias da propriedade […](5).

Esta descrição, baseada nos textos de Leon Battista Alberti do século XV, continuou vigente até hoje. Para isto, serviu-se de diferentes meios de comunicação, além da educação familiar e social, como os manuais do lar que tiveram o seu momento de esplendor no final do século XIX e início do XX até atualmente, através das revistas e programas televisivos para mulheres, sejam de decoração, de moda, de beleza, de trabalhos manuais ou de cozinha. Estes mecanismos de difusão perpetuam o papel da dona de casa perfeita, que inclui o de mulher moderna, o de amante e, como não, também o de excelente profissional.

Como veremos mais adiante, entre os manuais e os meios de difusão mais contemporâneos, como as revistas para mulheres, havia aqueles mais modernos que buscaram – e buscam – colaborar com a liberação da carga das tarefas domésticas que as mulheres realizam. Mas, mais modernos ou mais conservadores, poucos meios de difusão questionaram o lugar da mulher no lar. Pode ser uma mulher que trabalhe na esfera produtiva, mas o lar continua sendo sua responsabilidade.

No entanto, para responder a partir das suas próprias experiências, as mulheres propuseram mudanças substanciais para buscar uma maior igualdade de oportunidades a partir do próprio lar. Algumas destas propostas chegaram a ser realizadas, mas são pouco conhecidas e difundidas. Em muitos casos, a inovação e a transformação se enraízam na experiência direta do âmbito doméstico por parte das mulheres, o que as levou a propor mudanças e, uma vez conquistados papéis sociais de relevância, possibilitou articular pedidos e programas que se constituíram em verdadeiros manifestos. Estas mulheres ofereceram, a partir de visões que visibilizaram necessidades diferentes, oportunidades de inovações reais; não de aparências, mas de novas articulações e definições espaciais baseadas em mudanças nas relações sociais e na constituição dos grupos de convivência. Como exemplo claro, podemos pensar na casa em Utrech de Truus Schröder de 1924 ou no conjunto habitacional em Viena, Frauen Werkstadt, posteriormente denominado Margarete Schütte Lihotzky Hof, de 1992, com o Plano Diretor feito por Franziska Ullmann.

Cidade também, porque é a continuação necessária da moradia, o segundo espaço de socialização, o pano de fundo pelo qual nossa vida transcorre, e que evidentemente não é igual para aqueles que nela habitamos segundo papéis de gênero, idades, classes, sexo, origens… se é difícil rastrear contribuições de mulheres na arquitetura, é mais ainda no urbanismo. Por um lado, por ser necessariamente uma atividade interdisciplinar e de equipe (a arquitetura também, embora os nomes próprios são preponderantes), excluem-se muitos nomes em prol de construir um relato heroico. O urbanismo, devido à sua envergadura, que significa maiores investimentos, está ainda mais ligado ao poder do que a arquitetura e, com muitas poucas exceções, os poderes políticos e econômicos estiveram sempre em mãos masculinas, já que o acesso ao mesmo foi e continua sendo muito difícil para mulheres(6).

A cidade a partir da experiência das mulheres leva em consideração fatores como a proximidade, os detalhes dentro de uma estrutura maior — embora sem esquecê-la — e as pessoas na sua cotidianidade; questões todas que fogem à ideia de cidade como representação, ou da cidade como máquina onde tudo fica sujeito a equações simples. Há mais de 50 anos, Jane Jacobs reclamava a falta de complexidade com que se abordavam os projetos urbanos nos momentos em que a ciência passava dos estudos científicos simples de duas variáveis aos sistemas de variáveis complexas:

[…] a teoria urbanística seguiu aplicando com persistência os sistemas de pensamento e de análise de duas variáveis às grandes cidades; até hoje, os urbanistas e arquitetos acreditam estar em posse da verdade sobre o tipo de problema ao qual se enfrentam quando tentam formar ou reformar as vizinhanças das grandes capitais em versões do sistema de duas variáveis, com a proporção de algo (espaços abertos) dependendo simples e diretamente da proporção de outro algo (população)(7).

O pensamento urbano a partir da experiência das mulheres é complexo, está enraizado na realidade e no realismo(8), buscando um equilíbrio entre peças sociais e econômicas que não exclua os menos favorecidos.

Definitivamente, a tese que este livro quer apresentar é como diferentes experiências e diferentes perspectivas nos fazem reconhecer a realidade de maneiras distintas, respondendo de maneira diferente, e como as mulheres, que foram sempre as ‘outras’, contribuíram e contribuem com novas questões para a prática da arquitetura e do urbanismo. Não se trata de uma questão de formas mais curvas ou mais retas, mas que, diante da leitura, da análise da realidade de maneira distinta à estabelecida pela falsa universalidade da experiência masculina, as mulheres que protagonizam o livro encontraram novas problemáticas a partir de uma visão diferente à preponderante e por isto, propuseram novas respostas. A inovação é possível quando se resolve um novo problema e, a partir das experiências femininas, houve e ainda há muitas questões a serem resolvidas e, portanto, muita inovação proposta e por se propor. Por isto, além de resgatar nomes, ressaltaremos especialmente aquelas que fizeram da sua condição de mulher uma forma e um meio de conhecimento.

Por outro lado, para entender muitas das trajetórias profissionais das mulheres que de maneira pioneira exerceram tanto a profissão de urbanistas como de arquitetas, é necessário conhecer as suas vidas pessoais e as dificuldades, capacidades e oportunidades que enfrentaram. Não se trata de querer invadir a intimidade dessas arquitetas, mas de entender que cada um de nós conforma parte de um todo onde o pessoal, o privado e o público se desenham como esferas inseparáveis. Quando passamos a conhecer as vicissitudes da vida privada, o pessoal nos ajuda a compreender as ações pública.
(Páginas 36-42)

CAPÍTULO 6.
AS PIONEIRAS MODERNAS

[…]
Por que as mulheres desaparecem? 

Como comentamos no início, as mulheres têm maiores dificuldades para deixar a sua marca na história, principalmente quando escrita com um sistema de valores construído a partir de fatos masculinos e baseado no seu próprio relato heroico, o qual necessita desaparecer com qualquer sistema de trabalho em equipe e de colaboração, que, por outro lado, foi e é imprescindível tanto na arquitetura quanto na vida em si.

Em um texto de 2003, Judith Attfield apontava que os problemas identificados pela segunda onda feminista em relação à falta da presença das mulheres na historiografia projetual – logo, também da arquitetura – ainda se encontram vigentes. Em um dos textos determinantes da terceira onda feminista, Old Mistresses: Women, Art and Ideology (1981), Griselda Pollock e Rozsika Parker propunham métodos — ainda vigentes — para derrubar estes problemas. Argumentavam que não era suficiente evidenciar as mulheres artistas e designers esquecidas; era preciso desconstruir o sistema patriarcal, entendendo as maneiras em que as mulheres foram e ainda são marginalizadas(9).

Muitas mulheres arquitetas e designers que projetaram em equipe e em colaboração com outros arquitetos viram o desaparecer do seu nome da história da arquitetura. Algumas vezes, pelas falsidades construídas pela historiografia oficial que mal define autorias; outras, pela confiança das agendas e autorreferências dos criadores emblemáticos da modernidade. Além disso, o que é mais difícil de entender é que este desaparecimento se produziu inclusive no caso de mulheres que obtiveram relevância e reconhecimento em vida. Isso mesmo se considerando que, como explica Lynn Walker(10), a partir de 1928 a profissão de arquitetura era uma das recomendadas para as mulheres na Grã-Bretanha, o que se refletia no fato da sua produção ser bem recebida e ilustrada pela imprensa da construção nas décadas de 1920 e 1930. Mas, ainda assim, a história da arquitetura moderna as esqueceu.

Beatriz Colomina explica no seu artigo “Frentes de batalha E.1027”, publicado na revista Zehar, como a história esqueceu de Eileen Gray, atribuindo a sua obra a Le Corbusier ao reforçar um equívoco fomentado por ele mesmo:

A mutilação da casa coincidiu no tempo com a anulação de Gray como arquiteta. Quando Le Corbusier publicou os murais na sua Oeuvre complète de 1946 e na revista L’Architecture d’aujourd’hui de 1948, referiu-se à casa de Gray como “uma casa em Cap-Martin”, e nem sequer menciona o seu nome. De fato, o projeto da casa foi atribuído a Le Corbusier mais adiante, e inclusive o de parte do mobiliário. Ainda hoje, a confusão persiste […]

Em 1938, no mesmo ano em que foi pintar o mural Graffite a Cap-Martin, Le Corbusier havia escrito uma carta a Eileen Gray, depois de passar alguns dias na E.1027 com Badovici, na qual não apenas reconhece a única autoria dela, mas também o quanto gosta da casa: “Produz-me uma grande alegria comunicar-lhe o muito que esses poucos dias passados na sua casa me fizeram apreciar o espírito particular que dita toda a sua organização, tanto interna como externa[.]”(11) 

A casa E-1027 e a sua autora tinham sido totalmente esquecidas, como Jean-Paul Rayon explica na reedição do número de L’Architecture Vivante de 1929, quando no verão do ano 1969 ele e Emanuelle Rayon ficaram totalmente intrigados pelo descobrimento de uma casa moderna localizada entre a cabana e a casa de Le Corbusier. Apesar da relutância da proprietária, eles tinham certeza de que não era obra do arquiteto e conseguiram convencê-la a fazer um levantamento e desenhar toda a casa. Mostrando as suas fotos e desenhos para colegas e professores, chegaram a redescobrir quem era a autora e, posteriormente, conheceram-na. A partir de 1930, a autora e, posteriormente, a obra, foram esquecidas, até que em 1968 Joseph Rykwert publicou a obra de maneira parcial na Domus com o título “Un omaggio a Eileen Gray, pioniera del design”, e, em 1975, Jean-Paul Rayon publica o primeiro artigo monográfico na revista da SADG, “Architecture, Mouvement, Continuité”. Por fim, em 2006, publicou-se a primeira reedição da publicação tendo como base o exemplar que Eileen Gray guardava no seu domicílio, começando de maneira lenta a recuperar a sua figura e as suas contribuições(12).

Outras vezes, projetar em equipe com o companheiro sentimental lhes trouxe finalmente a invisibilidade para a glória absoluta do homem. Disto, o exemplo mais evidente é o caso na Finlândia de Alvar Aalto e das suas duas sócias e esposas. Alvar e Aino Aalto foram sócios até a morte dela em 1949. Em 1952, Alvar Aalto se casou e associou-se com Elsa ou Elissa Kaisa Mäkiniemi (1922–1994), uma jovem arquiteta que trabalhava no escritório. No entanto, as suas duas esposas e sócias são escassamente citadas como coautoras ou, em todo caso, recebem um reconhecimento menor(13) como gestoras ou designers de objetos, como utensílios, copos, pratos ou têxteis. Elissa continuou com o escritório de Alvar Aalto depois da sua morte em 1976, completou os projetos e as obras inconclusas como a ópera de Essen ao mesmo tempo em que restaurou alguma das obras anteriores como a biblioteca de Viipuri e a prefeitura de Rovaniemi(14). Além disso, a partir de 1976 foi a diretora de Artek e cedeu todo o arquivo do escritório para a Fundação Alvar Aalto, deixando-o acessível para a pesquisa.

Como vimos no capítulo anterior, em 1959, quando do reconhecimento do trabalho realizado por Wivi Lönn, Alvar Aalto ressaltou o valor e o papel das mulheres na sociedade finlandesa. Este reconhecimento de Alvar Aalto ao papel da mulher me leva a perguntar se ele teria reconhecido o papel desempenhado pelas duas arquitetas com as quais esteve casado e com quem compartilhou o escritório; quem terá cometido o esquecimento, Alvar Aalto ou a historiografia?

Os projetos das obras de Alvar Aalto com Aino Aalto estão assinados por ambos, no entanto, a historiografia não estabelece a sua participação. Sigfried Giedion, no seu livro Espaço, tempo e arquitetura, dedica um longo capítulo à obra do arquiteto, sem citar Aino em nenhum momento. Apenas na edição de 1949, e refletindo sobre a prematura morte dela, dedica-lhe duas páginas no final do capítulo para ressaltar o seu papel na sociedade.

Sadie Spieght (1906–1992) viu a sua trajetória desaparecer, ofuscada pela do seu marido e parte da sua vida sócio-laboral, apesar de ter sido uma pessoa de grande capacidade, atividade e relevância em vida. Sadie nasceu em Lancashire em uma família profissional e progressista, que procurou para ela e para a sua irmã uma vida não condicionada por serem mulheres; por exemplo, ambas jogavam críquete, situação incomum não apenas naquele momento, mas também hoje em dia, como está relatado na conferência do seu filho Kit Martin(15). Ambas estudaram na Universidade de Manchester, na qual Sadie formou-se em arquitetura com as melhores notas em 1929 e, até 1935 quando se casa com Leslie Martin, realizou uma trajetória tanto profissional no escritório Halliday and Associates, em Manchester, quanto acadêmica, com diversas bolsas de estudo que culminam em 1933 com a obtenção do diploma de Mestrado na Universidade de Manchester. Em 1930, recebeu a medalha de prata e foi escolhida como associada do RIBA.

De 1935 até o pós-guerra, Sadie Speight e Leslie Martin compartilham um escritório, realizando um bom número de projetos de residências privadas, entre elas a casa do designer têxtil e pintor Aliston Morton, publicada na
Architectural Review 86, de 1939. No período prévio à guerra, comprometeram-se conjuntamente a difundir através de uma publicação os seus pareceres e as suas convicções em relação ao futuro da arquitetura e do design moderno. Fundaram a Circle com o pintor Ben Nicholson e os escultores Naum Gabo e Bárbara Hepworth, com o propósito de realizar uma revisão da pintura, da escultura e da arquitetura internacional.

Em 1939, Martin e Speight publicaram o The Flat Book. O livro destaca os seus princípios projetuais para viver em um apartamento. Trata-se de um catálogo que oferece ideias e sugestões para planejar o espaço cotidiano, ao mesmo tempo em que introduzem novas ideias para o projeto dos apartamentos, como, por exemplo, dar menos espaço para as cozinhas e banheiros em benefício de maiores áreas de estar; na introdução, dão especial relevância à relação entre o planejamento e a mobília: “[o ato de] mobiliar […] está alterado na sua concepção, como a arquitetura por si só, por mudanças radicais em métodos de produção, mudanças nos requerimentos sociais e pela demanda contemporânea de conveniência e eficiência. É nestas condições básicas que todos os estilos encontram as suas raízes”(16). As ilustrações do livro são tanto de projetos próprios quanto de alheios, e no caso dos próprios, Jill Seddon afirma que é chamativo que a coleção de móveis modulares ‘Good Form’, projetados por ambos um ano antes para W. Rowntree and Sons, é atribuída no livro somente a Leslie Martin.

Durante a Segunda Guerra Mundial, Sadie Speight foi membro da Unidade de Pesquisa em Design (Design Research Unit – DRU) fundada por um grupo de arquitetos e designers para ajudar na definição do projeto de reconstrução do país no pós-guerra. Durante este tempo, concebeu alguns eletrodomésticos e, com esta experiência, começou a colaborar regularmente desde 1944 na seção ‘Design Review’ da revista The Architectural Review. O seu filho Kit, na palestra sobre os seus pais, faz referência ao trabalho dela nos interiores e no conhecimento projetual.

Ao finalizar a guerra, o casal separou a sua trajetória profissional: Martin continuou uma trajetória que lhe permitiu ser reconhecido como um dos arquitetos britânicos mais importantes e prestigiosos, aposentando-se como Catedrático da Escola de Arquitetura da Universidade de Cambridge e nomeado “cavaleiro” em 1957. Speight continuou seus trabalhos em arquitetura, projeto de interiores e de exposições ao mesmo tempo em que criava os dois filhos do casal, e dedicou a última fase da sua profissão a documentar e organizar o arquivo do seu marido.

Neste caso, estamos não somente diante do desaparecimento dela na historiografia, mas que pareceria existir um pacto, explícito ou não, de engrandecer a figura dele a todo custo para garantir a sobrevivência da obra, desaparecendo ela mesma do livro conjunto de 1939 e construindo ela mesma a figura de Martin depois da sua morte, como explica Jill Seddon:

Na repetição de excisões iniciais, o folheto que acompanhava a exposição em Lisboa sobre os primeiros trabalhos de Martin enumera os primeiros trabalhos conjuntos, incluído The Flat Book, nos quais todos os créditos assinalam unicamente a ele como autor. De novo, este é um livro que Speight conhecia com toda certeza e que possivelmente tinha sido desenhado por ela. A absorção das suas conquistas dentro das de seu marido não é em nenhum lugar tão evidente como nos seus próprios obituários, com um deles afirmando que “desde este período [a Segunda Guerra Mundial] as suas energias foram claramente injetadas na excepcional trajetória do seu marido Sir Leslie Martin(17).

No entanto, não foi a única mulher que desapareceu conscientemente conduzida pelos papéis relativos ao engrandecimento da figura de seu sócio e marido. Um exemplo ainda mais impressionante é o caso de Marion Mahony Griffin, que viveu vinte e quatro anos a mais que o seu marido, dando continuidade aos trabalhos conjuntos de ambos e resolvendo novos projetos e, no entanto, escreveu um livro no qual resumia a sua trajetória, porém dava ao marido todos os méritos pelos seus trabalhos(18).

Como podemos ver, o papel exercido por muitas mulheres em diferentes campos da arquitetura moderna e nos projetos para as novas formas de vida foi importante desde o início do século XX. Não obstante, o seu reconhecimento público é muito escasso. Os seus nomes foram literalmente excluídos da história da arquitetura. Veja-se, por exemplo, alguns manuais ou livros básicos como o de Kenneth Frampton ou o de William Curtis, que dão um protagonismo quase nulo às mulheres arquitetas e designers, ou a Enciclopédia da Arquitetura do século XX de Vittorio M. Lampugnani, que com mais de 2.000 nomes citados, as mulheres só merecem três verbetes e são citadas 44 vezes. Não apenas é óbvia a falta de nomes, como também são citadas de maneira discriminatória. Por exemplo, quando uma equipe é formada por vários homens, como o caso de Van der Broek-Bakema ou Bohigas-Martorell-Mackay, aparecem como equipe e com voz própria todos os arquitetos, mas quando na equipe há mulheres, elas só aparecem dentro do verbete genérico do grupo ou do arquiteto, por exemplo, Robert Venturi-Denise Scott Brown ou Franco Albini-Franca Helg.
(Páginas 178-185).—

Panificadoras, máquinas de café expresso, etc.
2  Brullet, Cristina. Tiempo, cuidados y ciudadanía. Corresponsabilidades privadas y públicas. Editado por Ajuntament de Barcelona; Setor d’Educació, Cultura i Benestar Regidoria d’Usos del Temps, 2010.
3  Beauvoir, Simone. El segundo sexo. Madrid: Ediciones Cátedra, 2005.

4  Collado, Cecilia Castaño. “La segunda brecha digital y las mujeres”, Mujeres en Red, agosto de 2008. Disponível no link. Acessado em 2 de dezembro de 2013. La Tercera, “Cepal: tasa de uso de internet de las mujeres es en promedio 8,5% menor a la de los hombres”, 15 de outubro de 2012. Disponível no link. Acessado em 2 de dezembro de 2013.
5 Wigley, Marc. “Sense títol: l’allotjament del gènere”. Em Colomina, Beatriz. Sexualitat i espai. El disseny de la intimitat. Barcelona: Edicions UPC, 1997, pág. 215.
6  Em 2013, Kazuyo Sejima declarava que, como no Japão as mulheres não intervêm na política, ela tinha poucas possibilidades de realizar grandes projetos no seu país.
7  Jacobs, Jane. Muerte y vida de las grandes ciudades. Madrid: Editorial Capitán Swing, 2011, p. 474. (1ª edição em inglês em 1961).
8  Real: 4. adj. Que existe ou ocorre de fato. Realismo: 6. sm. Disposição para pensar e agir de acordo com a realidade das coisas ou dos fatos, rejeitando os planos visionários ou idealizados. Fonte: Michaelis, online.
9  Citado em “Part-Time Practice as Before: The Career of Sadie Speight, Architect” por Jill Seddon. Em Women and the Making of Built Space in England, 1870–1950, editado por Elizabeth Darling e Lesley Whitworth. Aldershot: Ashgate Publishing Limited, 2007.
10  Walker, Lynne. “Concrete Proof: Women, Architecture and Modernism” em Feminist Art News, 3 (1990): 6–8. Citado em “Part-Time Practice as Before: The Career of Sadie Speight, Architect” por Jill Seddon. Em Women and the Making of Built Space in England, 1870–1950, editado por Elizabeth Darling e Lesley Whitworth. Aldershot: Ashgate Publishing Limited, 2007.
11  Colomina, Beatriz. “Frentes de batalla E.1027”, s/l: Zehar, 44 (2000): 20–25.
12  Jean-Paul Rayon, “Une (autre) villa moderne” em L’Architecture vivante. Eileen Gray. Jean Badovici. E1027. Maison em Bord de Mer, reedição editada por Jean-Lucien Bonillo. Marselha: Imbernon Editions, 2015.
13  Vale esclarecer que esta autora que vos escreve não considera nenhuma atividade inferior; pelo contrário: considero necessário reconhecer que nos trabalhos complexos – como são a arquitetura, o urbanismo e o design – o trabalho em equipe é imprescindível, e isto quer dizer colaborativo, sem exclusões.
14  Ver link.
15  Ver link.
16  Citado em “Flats”, por Sharon O’Neil, disponibilizado no link, acessado em 8 de janeiro de 2017, de ‘Foreword’ em The Flat Book de Leslie Martin e Sadie Speight S. Londres: Heinemann, 1939.
17  Seddon, Jill. “Part-Time Practice as Before: The Career of Sadie Speight, Architect” em Women and the Making of Built Space in England, 1870–1950, editado por Elizabeth Darling e Lesley Whitworth. Aldershot: Ashgate Publishing Limited, 2007.
18  Em 1938, voltou para Chicago e escreveu a biografia do trabalho e da vida do casal, The Magic of America. Disponibilizado no link, acessado em 7 de junho de 2018.
Teoria  |  Extratos de Mulheres, casas e cidades – Zaida Muxí Martínez
1/1