Teoria  |  Arquitetas da modernidade. Os relatos historiográficos hegemônicos e aqueles “outros” – Daniela Arias Laurino
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Arquitetas da modernidade.
Os relatos historiográficos
hegemônicos e aqueles “outros”

O presente texto enquadra-se em uma pesquisa que revela como e porque a construção dos relatos arquitetônicos da modernidade originados na Europa excluiu do panorama arquitetônico muitas mulheres que exerceram a profissão e participaram desta grande mudança paradigmática que marcou a arquitetura do século XX e que perdura até a atualidade.

As mulheres estiveram efetivamente presentes no desenvolvimento dos ideais e da produção da arquitetura e do urbanismo modernos e, no entanto, as suas contribuições ou foram excluídas ou não figuram nos relatos historiográficos com a mesma visibilidade outorgada aos arquitetos homens. A historiografia de todo esse campo disciplinar forja a sua identidade ao longo de alinhamentos específicos que comumente têm implicações em termos de gênero. Segundo Joan Wallach Scott em El problema de la invisibilidad (1997), não foi a falta de informação sobre as mulheres, mas a ideia de que tal informação não tinha relação com a história, o que conduziu para a sua invisibilidade nos relatos do passado. Por este motivo, urge demostrar a pertinência de incluir na história essa face oculta, sem a qual a narrativa da arquitetura moderna estará incompleta.

Embora tanto as arquitetas como as suas contribuições tenham conseguido algum reconhecimento em seu momento, não passaram ao formato permanente do escrito, não fizeram parte daqueles relatos endossados academicamente, daqueles que construíram “a história oficial” do Movimento Moderno e, portanto, não criaram genealogia. Uma das consequências desta exclusão é a escassa referência às arquitetas nos centros de ensino, nas universidades e nos espaços de difusão cultural, como museus ou publicações periódicas ao redor do mundo. Esta falta de modelos femininos no imaginário coletivo profissional e acadêmico internacional consolidou a crença de que as arquitetas não fizeram parte da modernidade ou que as suas contribuições não foram suficientemente significativas para serem publicadas; por outro lado, nos casos em que chegaram a ser consideradas, assume-se que ocuparam um papel secundário, de inspiradoras, colaboradoras ou protagonistas de artes menores.

Mas então, por que as contribuições femininas foram esquecidas, omitidas ou excluídas da história? Os fatores são diversos e abrangem desde a determinação de papéis de gênero, a posição subalterna em contraposição à dominante, a falsa neutralidade do conhecimento científico, até a misoginia ou a linguagem, entre outros. Como afirma Ana López Navajas(1), essa exclusão ou supressão sistemática se deve a que toda produção cultural que não se corresponde nem em perspectiva nem em natureza discursiva ao cânone androcêntrico, ficou (e ainda fica) excluída das histórias. É uma questão de posição, do lugar demarcado, na cultura, na história, e nas sociedades. Este lugar poderá ser central, adjacente, periférico ou isolado e dependerá de nossas categorias biológicas, sociais e culturais: gênero, etnia, classe, etc.

O fato de que as comunidades científicas sempre estiveram integradas tradicional e principalmente por homens, brancos e de classes privilegiadas, tiveram um profundo impacto em como a prática e o entendimento científico da objetividade foram desenvolvidos.

Neste sentido, sobre o denominado “problema da mulher” – ou, “the woman question”(2) – a historiadora da arte Linda Nochlin insiste em questionar até que ponto as mulheres continuavam condicionadas pelo status quo e por que são as mulheres “o problema”. Manifesta-se no século XX “o problema da pobreza”, “o problema dos afrodescendentes”, “o problema dos judeus”. A autora exorta a revisar de que forma as premissas são formuladas, quem as formula e a que propósitos servem se “o problema” é o dos grupos oprimidos. Nesta reflexão do início dos anos setenta, Linda Nochlin se aproxima, mediante a noção de opostos (privilégio versus opressão), aos princípios da interseccionalidade, conceito utilizado atualmente que surgiu no final dos anos oitenta(3). A interseccionalidade como teoria permite uma visão multidimensional e sistêmica das identidades e de como operam sobre elas a desigualdade e, consequentemente, a discriminação.

Neste sentido, o Movimento Moderno e o seu desdobramento midiático surgido no período entre guerras contribuiu para mitificar a figura demiúrgica do arquiteto-autor, figura funcional aos interesses do mercado global em transformação e encarregada de forjar um star-system da arquitetura. A postura dominante primeiromundista foi determinante para a consolidação da cultura androcêntrica na qual o homem, como padrão de medidas, promoveu o individualismo e a megalomania. Podemos dizer, então, que a omissão das contribuições das mulheres arquitetas na historiografia teria a sua origem em um sistema no qual as características identitárias (categorias biológicas, sociais e culturais como o sexo, a deficiência física, a idade, o gênero, a orientação sexual, a etnia, a classe, a religião, a nacionalidade, e outras características de identidade) estão definidas, ao mesmo tempo em que definem âmbitos de autoridade e de subordinação. Isso porque o androcentrismo opera em um duplo sentido: discrimina todas e tudo o que foge ao seu padrão e, ao mesmo tempo, consolida estereótipos.

Como Diana Agrest assinala, é através dos textos onde se estabelece esta ideologia na qual o corpo masculino é representante dos projetos de edifícios e de cidades e suprime a mulher, o corpo feminino. Mas a reflexão de Agrest vai além de estabelecer essa contraposição ao afirmar que se produz uma usurpação de categorias identitárias, onde o arquiteto masculino:

“[…] é representado como mulher em relação à função reprodutiva e criativa, operando como uma substituição sexual. E o corpo masculino transforma-se em feminino nas suas funções de dar sustento, ou seja, vida – à cidade –. O útero da mulher é substituído pelo umbigo do homem”(4).

Durante as décadas de trinta a cinquenta, as vozes femininas foram caladas. Foram tempos de guerra, de vazios que se sobrepuseram às conquistas civis alcançadas, como o sufrágio e o acesso à educação, foram tempos do “anjo do lar”. O sexismo se manifestou com mais virulência e a ginopia(5) dominou o panorama. A incapacidade de ver o feminino e a invisibilização desta experiência se camuflava sob a suposta igualdade alcançada nos anos anteriores. Neste contexto social e também geopolítico, não foram poucas as expressões arquitetônicas produzidas por mulheres, relatos outros que foram silenciados sob o influxo dos relatos dominantes da modernidade.

 

Fazer parte de espaços de representação históricos e desaparecer dos relatos

A arquitetura da primeira metade do século XX se deu através de acontecimentos notáveis que foram plataformas de desenvolvimento e cenários para divulgação. Cenários que tornaram visíveis a ruptura com o passado e a consequente consolidação de um processo de mudança que se iniciou com as vanguardas e que foi apresentado ao mundo como uma nova etapa na qual as artes, a literatura, o cinema e a arquitetura tiveram um papel fundamental. Encontros profissionais (como os congressos internacionais), produções escritas e opiniões expressadas em atas e manifestos, exposições, novos espaços de ensino ou aqueles grupos voltados à pesquisa e ao desenvolvimento intelectual, marcaram as mudanças de rumo em distintas partes da geografia mundial. Não está demais ressaltar que as mulheres conformaram parte ativa destes espaços de transformação(6).

Estes âmbitos foram impulsionados por catálogos, atas e publicações periódicas, muitas destas de curta duração e de qualidade artesanal que compilaram e difundiram textos com reflexões, críticas ou fotografias das últimas novidades em matéria de protótipos, instalações ou obras construídas. Como afirma Beatriz Colomina, nenhum trabalho e nenhuma figura existiu antes de ser publicado, exemplificando esta tese com os exemplos de Adolf Loos e a pequena revista Das Andere de 1903, o manifesto futurista em Le Figaro de 1909 ou Le Corbusier com L’Espirit Nouveau entre 1920 e 1925, entre outros. Em seu livro Privacy and Publicity, Colomina argumenta, através das figuras de Adolf Loos e Le Corbusier, como o Movimento Moderno resulta exitoso graças à sua relação com os meios de comunicação e como desta forma se produz um deslocamento radical do sentido tradicional do espaço.

Enquanto as revistas periódicas comerciais e de maior trajetória foram representativas da importância que a disciplina alcançava neste momento, o formato breve e seriado permitiu o aparecimento paralelo de revistas com caráter artesanal ou de pequena escala que constituíam uma forma alternativa de publicação. Estas se caracterizaram por uma gestão e difusão que faziam uso de lógicas de produção independentes. O seu projeto gráfico e suas simbologias eram fruto da cultura em esplendor associada à irreverência e à necessidade de transformação, mas não estavam alheias à crítica e ao debate. Os grupos de pesquisa e debate, assim como os programas educativos, congressos e eventos da modernidade, manifestaram os seus ideários em publicações próprias que buscaram ir mais além dos âmbitos locais. Para algumas das mulheres arquitetas que atuavam na construção de habitações, na reconstrução das cidades, no design de móveis ou na teoria da arquitetura, supôs um espaço onde foi possível deixar a sua marca.

Como foram omitidas pelos livros (gênese oficial da arquitetura), a publicação destas contribuições, fragmentadas e dispersas em artigos de opinião ou sobre projetos concretos, mostras ou livros independentes, resulta em um dos poucos registros para a pesquisa sobre a produção e o pensamento disciplinar desenvolvidos pelas mulheres(7).

Contribuições escritas como as de Margarete Schütte-Lihotzky foram profundamente silenciadas, e, no entanto, existiram. Por exemplo: “Die Wohnung der alleinstehenden berufistätigen Frau” [A moradia da mulher trabalhadora], um manuscrito de 1928 e publicado em Form und Zweck. Fachzeitschrift für industrielle Formgestaltung [Forma e propósito. Diário comercial para o design industrial], em Berlim, de 1984; “Die Frau in Österreich” [A mulher na Áustria], de 1964; ou “Neue Schul-und Lehrküchen” [Novas cozinhas para o ensino e a formação] em Lebenswirtschaft und Lebens Unterricht, de 1928. Sobre a sua atividade de colaboração em revistas e periódicos de 1945 a 1991, Lorenza Minoli expressa:

“Schütte-Lihotzky escreveu muitos artigos sobre urbanismo, moradia, o lar da mulher trabalhadora, a cozinha em Frankfurt e também lembranças pessoais dos arquitetos Strnad, Loos, Frank, May, Gropius, que conhecia muito bem e com os quais, a exceção de Gropius, também trabalhou. Ministrou uma palestra sobre o seu trabalho na arquitetura nas universidades e academias, falou como testemunha aos jovens interessados, concedendo entrevistas de rádio e de televisão e escreveu as suas memórias, editadas em 1985 em um livro intitulado Erinnerungen aus dem Widerstand 1938-1945(8) [A vida de luta de uma arquiteta de 1938 a 1945]. Este livro é o testemunho da sua participação na resistência, do julgamento imediato, da carceragem e da liberação. Além do trabalho profissional, participou na atividade das duas organizações mais importantes dos arquitetos [do Movimento Moderno], os CIAM e a UIA, e esteve presente em congressos de arquitetura, construção e urbanismo”(9).

Também Charlotte Perriand escreveu inúmeros artigos nos quais, segundo Caterina Franchini, são reveladas as modalidades perceptivas próprias do seu processo projetual. As suas temáticas principais foram a questão da moradia e do design japonês. Alguns destes artigos são “A casa familiar. O seu desenvolvimento econômico e social”, em L’Architecture d’Aujourd’hui, n.1, de 1935 escrito com Junzo Sakakura; “Au Japon”, em L’Architecture d’Aujourd’hui, n.2, de 1949; “L’art d’habiter”, em Techniques et Architecture, número especial, 33-96, de 1950; “Une tradition vivante”, em L’Architecture d’Aujourd’hui, 65, em 1956; “Crisi del gesto in Giappone”, em Casabella Continuità, 210, 1956; ou “Salon des Arts Ménagers. La Maison Japonaise”, em Aujourd’hui art et architecture, 12, 1957. Sobre a tendência à forma e à exposição fenomenológica da escrita de Charlotte Perriand, Caterina Franchini assinala que “nos seus escritos, as questões relacionadas à construção e à tecnologia sempre estão intencionalmente subordinadas à sociedade e aos seres humanos”(10).

Em 1954, sob a direção de Ernesto Nathan Rogers a revista italiana Casabella Continuità restabelecia as suas publicações logo após a última suspensão em 1947. Gae Aulenti é conhecida pela sua vasta colaboração nesta redação de 1955 até 1965. A partir das suas páginas, difundiu o Neoliberty como alternativa ao racionalismo ainda imperante nos tratados arquitetônicos da época, sendo parte de uma série de publicações conhecidas como o debate anglo-italiano entre Casabella Continuità e Architectural Review (com Reyner Banham na direção) que enfrentaram as duas posições. Vale como exemplo deste episódio a contribuição de Sibyl Moholy-Nagy para essa discussão, o que revela o impacto que as revistas tiveram no século XX como forma rápida de comunicação e fomento ao debate. Sendo Moholy-Nagy uma das críticas de arquitetura mais polêmicas de meados de século, escreve de Nova York e acusa Banham de não conhecer a base ideológica da revolução arquitetônica na Itália que, segundo a historiadora de arte e arquitetura, reside na “profunda obrigação para com a Continuidade Histórica, que está tão enraizada na mente italiana como está o isolamento provinciano na inglesa”.

Existem ainda outros casos, como o de Catherine Bauer, quem publicou intensamente artigos acadêmicos e de opinião durante toda a sua trajetória na imprensa e em revistas. Alguns exemplos são: “Machine-age mansions for ultra-moderns: French builders apply ideas of the steel and concrete era in domestic architecture” The New York Times Magazine, 1928; “Prize essay: Art in industry” no Fortune, 1931; “Architecture in Philadelphia” ou “The palace of the popes” na Arts Weekly, ambos de 1932; e “ Slum clearance’ or ‘housing’?” Nation, 1933; além de outras mais específicas e acadêmicas, como “Do Americans hate cities?” no Journal of the American Institute of Planners, 1956; “Architecture and the cityscape” no Journal of the American Institute of Architects, 1961; “The social front of modern architecture in the 1930’s” no Journal of the Society of Architectural Historians, 1965; “The dreary deadlock of public housing” na revista Architectural Forum, 1946; “Planning is politics… but are planners politicians?” na Pencil Points, 1944; “A balance sheet of progress” na Architectural Record de 1941, ou “Can cities compete with suburbia for family living?” de 1964. Estes são apenas alguns exemplos dentre mais de 115 artigos, livros e relatórios escritos entre 1928 e 1965.

As contribuições teóricas de Catherine Bauer e as profissionais antes mencionadas são quantitativamente a exceção em comparação aos arquitetos publicados. Uma pesquisa sobre a revista Domus detalha que de um total de 321 edições que abrangem vinte e nove anos, de 1946 a 1975, setenta estão completamente desprovidas de artigos sobre ou escritos por mulheres. Aproximadamente 500 artigos apresentam o trabalho das mulheres e, considerando que cada número continha em média de vinte a trinta artigos, a presença de mulheres era visivelmente marginal. Esta era uma situação que não mudaria ao longo dos anos, embora o número mais alto de mulheres em qualquer edição aconteceu em 1972 (no número 512) quando vinte e quatro mulheres foram publicadas. Como detalha Catherine Rossi, isto aconteceu devido principalmente à ampla cobertura que a revista Domus realizou sobre a exposição anual de design Eurodomus, que mostrou produtos de origem italiana. Mais da metade das mulheres publicadas na Domus trabalharam de forma independente e aproximadamente um terço com um ou mais companheiros masculinos. “Era mais provável que uma mulher que trabalhasse de maneira independente fosse apresentada junto a outras mulheres, do que ter um artigo completo dedicado somente a ela”(11).

Em março e em junho de 1948, a Architectural Record publicou um artigo dividido em duas partes sobre o trabalho de mulheres arquitetas intitulado “A Thousand Women in Architecture”. Foram resenhadas dezoito arquitetas das 1.119 mulheres que praticavam a profissão ou estavam estudando arquitetura, conforme os dados da época fornecidos pela Women’s Archictetural Association e as indicações das escolas de arquitetura dos Estados Unidos(12).

Uma conjuntura semelhante foi a da revista Architectural Design em 1975, mas neste caso, fruto de uma proposta radical: foi um número dedicado completamente às mulheres arquitetas produzido por uma redação especial composta inteiramente por mulheres. A revista AD, dirigida nesse momento por Monica Pidgeon, contou com uma equipe composta por um grande número de mulheres jovens entre as quais estava Barbara Goldstein. Em maio de 1975, anunciaram o aparecimento do número “Women in Architecture”, que aconteceria naquele mesmo ano, no mês de agosto. Eva Álvarez afirma sobre o contexto britânico daquela época:

“[…] é relevante que a AD Architectural Design dedique um número completo à questão “mulheres na arquitetura”, em 1975, momento no qual a sociedade britânica estava muito conscientizada sobre a luta pelos direitos básicos das mulheres (salário igualitário, não discriminação por razão de gênero, direito à licença por maternidade, legislação da lei do aborto). No entanto, as mulheres eram uma clara minoria em qualquer setor do mundo profissional relacionado à arquitetura: era escasso o número de mulheres registradas no Royal Institute of British Architects, RIBA, e no Architects Registration Board, ARB, era ínfimo o número de mulheres trabalhando em escritórios em nome de outra pessoa, etc.”(13).

Algumas das conclusões propostas por Eva Álvarez sobre o estudo pormenorizado desta publicação (como fato histórico e de relevância cultural) são, de forma mais geral: primeiro, mesmo não se definindo como feminista, Monica Pidgeon era diretora e mulher e isto revela “a importância e a necessidade de que as mulheres (feministas ou não) ocupem postos de responsabilidade na sociedade, no mais alto nível”; depois, constatou-se que não se reconhece suficientemente bem o trabalho realizado pelas mulheres arquitetas nem se revisa o seu trabalho criticamente, embora exista uma tendência a falar sobre o caso. De maneira particular, a autora destaca que a inclusão de jovens arquitetas e estudantes na equipe trouxe novas questões e pontos de vista, permitindo-lhes uma oportunidade de escrever e assinar artigos.

A escassa representação de mulheres arquitetas em termos gerais está diretamente relacionada com a falta de visibilidade midiática produzida como consequência da condição de alteridade. Em nenhum caso foi porque não existiram, ou porque sua produção não tenha sido publicável em termos qualitativos, embora neste último ponto são determinantes as relações de poder, a tomada de decisões sobre o que pode ser publicado e os padrões aceitos e consolidados pelos mesmos que os estabeleceram. Um exemplo disto é o caso de Sadie Speight, quem sofreu com uma difícil relação editorial com Nikolaus Pevsner. Em 1943, a revista The Architectural Review incluiu uma seção denominada Design Review, editada entre 1944 e 1946, na qual ambos colaboraram. A relação epistolar que mantiveram é explicada por Jill Sendon no artigo “The Architect and the Arch-pedant: Sadie Speight, Nikolaus Pevsner and Design Review”, publicado no Journal of Design History(14). Jill Sendon detalha que as cartas de Pevsner enviadas a Speight estão repletas de exigências para que as tarefas editoriais sejam realizadas imediatamente e conforme as suas especificações, e que foi particularmente insistente na escrita e na revisão dos títulos fotográficos. Em muitas ocasiões, a sua interferência chegou a um tom “decididamente condescendente, se não francamente misógino”. Em relação a uma das cartas enviadas por Pevsner a Speight, exigindo-lhe que se limitasse a fazer um trabalho jornalístico e que deixasse de a filosofia de lado, não existe registro da reação imediata da arquiteta, “mas ela era perfeitamente capaz de fazer uma defesa sólida das suas próprias decisões editoriais”, expressa a autora. O comportamento de Pevsner levou Speight a uma crise: em uma de suas cartas começou escrevendo ao arquiteto: “acredito que deve haver algum mal-entendido sobre este trabalho na Design Review”, e continuou:

“Quando aceitei este trabalho, entendi que ia ser a sua ‘pesquisadora chefe’ [chief scout] para selecionar diversas ilustrações adequadas para completar de ‘meia a duas páginas’ mensalmente. Para apoiar este programa, escrevi artigos para cada número que compilei… o senhor sempre os modificou como lhe pareceu… as suas cartas parecem sugerir que é parte do meu trabalho produzir textos de jornalismo para essa seção e, caso as minhas ideias sejam opostas as suas, voltar a reescrevê-los. Se isto é o que você acha que eu devo fazer, sinto muito, mas devo pedir demissão.”

Lembremos que para Sadie Speight a escrita tinha surgido como uma extensão natural da sua prática profissional e da sua experiência com a Design Research Unit (DRU), como designer industrial junto a Su Rogers, as únicas mulheres que formavam parte da unidade. Com este grupo, criado para coordenar e definir o design industrial para a reconstrução da Inglaterra do pós-guerra, escreveu o artigo “Inside the House” para uma série de ensaios publicados com o título The Practice of Design, em 1946. Em 1939, junto a Leslie Martin, publicou The Flat Book.

A finalidade desta breve resenha é contextualizar o conflito a partir das destrezas particulares de cada um e enfatizar a relação profissional de gênero entre dois divulgadores do design do pós-guerra na Inglaterra. Antes de tudo, esse caso serve para exemplificar o lugar que foi atribuído a cada um deles tanto naquele momento como nos dias atuais, em um dos meios de difusão especializados mais importantes local e internacionalmente. Depois, também nos permite questionar como a negação de autorias em meios de comunicação de massa e acadêmicos levou, como já mencionado, ao ocultamento de profissionais especializadas e competentes. Por último, interessa-nos observar as formas de atuação profissão e como se dá o seu reconhecimento social, empresarial e acadêmico.

Embora também tenham sido omitidas pela historiografia, muitas mulheres arquitetas ocuparam postos de direção em importantes revistas periódicas dedicadas à arquitetura e ao design. Lina Bo Bardi, por exemplo, foi editora da revista Quaderni di Domus e fundadora, em 1945, da publicação semanal A Attualità, Architettura, Abitazione, Arte-Cultura della Vita, junto com o seu mestre Bruno Zevi e o seu sócio Carlo Pagani. Em 1950, junto a Pietro Maria Bardi, funda a revista Habitat. Revista das artes no Brasil. Monica Pidgeon foi editora de Architectural Design AD de 1946 a 1975, e até 1979 foi editora da RIBA Journal, a revista oficial do Royal Institute of British Architects. Jaqueline Tyrwhitt se aposentou de Harvard em 1969 e se mudou para a Grécia, onde foi nomeada editora da revista Ekistics. Na América Latina, a arquiteta e historiadora Marina Waisman começou a sua colaboração com a Revista Summa de Buenos Aires em 1970 e dirigiu Summarios a partir de 1976. Escreveu a coluna de opinião “Post Scriptum” na revista de Arquitetura Summa+ desde a sua primeira edição, em 1993, até 1997. Em seu primeiro livro, La estructura histórica del entorno, de 1972, realiza uma interpretação a partir da cultura latino-americana do livro Teorie e Storie dell’architettura, de Manfredo Tafuri.

 

Grupos de trabalho e publicações da modernidade

Conforme a realidade supera a utopia e os projetos e protótipos modernos começam a ser construídos e a ser objetos de debate, as revistas e periódicos de vanguarda iniciam o seu progressivo desaparecimento. L’Espirit Nouveau foi editada pela última vez em 1925, De Stijl em 1928 e a revista da Bauhaus em 1929. Em 1926, surgem Das neue Frankfurt, que reúne a experiência habitacional iniciada nesse mesmo ano, e Die Form no marco da Deutscher Werkbund. A designer Lilly Reich, por exemplo, que foi integrante do Werkbund a partir de 1912 (e a sua diretora entre 1922 e 1926), esteve vinculada a esta revista. Embora existam muito poucos textos seus, aqueles conhecidos ilustram bem o seu enfoque sobre o design. De acordo com as pesquisas de Matilda McQuaid e de Magdalena Droste, em 1922 Reich publicou “Issues of Fashion” em Die Form, que apresentou uma aproximação à moda como um manifesto, propondo que ela fosse profundamente enraizada nos princípios do Werkbund que apoiaram a produção industrial(15).

Muitas das profissionais que fizeram parte desta transformação do entre guerras foram integrantes ativas dos CIAM nas suas diferentes edições e estiveram vinculadas a diferentes publicações. Algumas delas foram Margarete Schutte-Lihotzky, cuja destacada trajetória remonta aos trabalhos com Adolf Loos na administração pública de Viena ao contribuir de forma inovadora para a arquitetura doméstica e cujo trabalho foi essencial para o Projeto Habitacional de Neues Frankfurt. Por este motivo, esteve presente e fortemente vinculada ao CIAM II em 1929 em Frankfurt. Foi autora da cozinha de Frankfurt, colaboradora e redatora da Revista Das Neue Frankfurt (1926-1930) e participou também dos projetos soviéticos nas Brigadas May junto com Lotte Stam Beese. Esta última, arquiteta e urbanista destacada, foi Diretora de Urbanismo da cidade de Roterdã desde 1948, mas a partir da sua chegada aos Países Baixos em 1935, estabeleceu conexão com o círculo dos New Builders holandeses, reunidos no Grupo dos 8 em Opbouw, revista na qual escreveu entre 1935 e 1939. Além disso, Lotte Stam Beese fez parte do CIRPAC 1935, um dos grupos de debate e proposta dos Congressos Internacionais de Arquitetura (CIAM) em Amsterdã, junto a Helena Syrkusowa. Também chamada no ocidente Syrkus, esta arquiteta e professora universitária polonesa foi uma destacada cofundadora do grupo Praesens em 1925 e esteve vinculada fortemente aos CIAM, dos quais foi vice-presidente entre 1947 e 1954. Foi uma das editoras da Carta de Atenas em 1933, manifesto correspondente ao CIAM IV. Este encontro, produzido em uma viagem em barco de Marselha até Atenas, contou com as arquitetas Charlotte Perriand, pela delegação francesa, Marie Reidenmaister, da Áustria, Helena Syrkus e Barbara Brukalski, da Polônia, e a historiadora da arte Carola Giedion-Welcker da Suíça. As reuniões preparatórias do CIAM-CIRPAC celebradas na Inglaterra (no RIBA) em 1934 contou com a presença de Helena Syrkus e Charlotte Perriand.

Terminada a Segunda Guerra Mundial, novas mulheres aparecem no panorama dos Congressos Internacionais. No CIAM VI de 1947, realizado em Bridgwater, Inglaterra, Minnette de Silva, representante e pioneira do Movimento Moderno regional no Ceilão (Sri Lanka desde 1948), designer, editora e redatora da revista Marg, foi delegada pelo Ceilão e pela Índia neste CIAM e até 1956. Outras arquitetas, como Sadie Speight, que recebeu a medalha de prata do Royal Institute of British Architects em 1930, foi coautora do Circle, um manifesto da arte construtivista em 1937, e, em 1943, como foi mencionado, uma das integrantes fundadoras do Design Research Unit (DRU), uma das primeiras consultoras de design britânicas que combinou experiência em arquitetura, design gráfico e design industrial. Speight fez parte do grupo M.A.R.S junto com Jane Drew. Esta última, destacada arquiteta britânica cujo trabalho internacional estava enraizado com a economia, o conforto e a qualidade ambiental, foi fundadora e promotora do Grupo de Pesquisa M.A.R.S para difundir as ideias e as práticas do Movimento Moderno na Grã-Bretanha. Além disso, destacou-se como escritora de publicações como a Village Housing in the Tropics de 1945, Tropical Architecture in the Humid Zone de 1956 e Architecture and the Environment, publicado em 1976.

Também fizeram parte do VI Congresso, dedicado à reconstrução das cidades devastadas pela Segunda Guerra Mundial, Monica Pidgeon e Barbara Rendel (Inglaterra), Margarete Schütte Lihotzky, Lotte Stam Beese, Blanche Lemco (Canadá) e Jean-Jaques Honegger (Suíça).

Jaqueline Tyrwhitt, urbanista britânica, jornalista, editora e educadora, foi uma figura fundamental na rede transnacional de teóricos e profissionais que modelaram o Movimento Moderno do pós-guerra. Multifacetadas, as suas contribuições se centraram no projeto comunitário descentralizado, a arquitetura residencial e a reforma social. Editou livros como Patrick Geddes in India, 1947; Human Identity in the Urban Environment, 1971; e as atas do oitavo CIAM, The Heart of the City: Towards the Humanisation of Urban Life, onde também há um artigo de sua autoria.

Para a preparação do CIAM VII, nas comissões III e IV, estiveram presentes Jaqueline Tyrwhitt na comissão III. A de Urbanismo, Blanche Lemco na comissão III.B, encarregada da Expressão Arquitetônica, e Jane Drew na comissão IV, sobre Educação em Arquitetura.

Todas estas profissionais, arquitetas, urbanistas, editoras ou historiadoras, foram protagonistas de grupos de reflexão e pesquisa, tanto nos seus respectivos países quanto internacionalmente, e deixaram nítidas as suas opiniões em debates, projetos, estatutos, artigos ou publicações. Todas elas compartilharam com os seus sócios e colegas masculinos âmbitos de trabalho, experiências e saberes.

 

Arquitetas da Bauhaus

A Bauhaus foi o centro de ensino por excelência que forjou a transição e sedimentou o ideário do Movimento Moderno. O espírito da modernidade foi forjado durante 14 anos nas suas salas de aula, no seu discurso, nos seus conteúdos e nas suas obras.

A incursão das mulheres na Bauhaus foi historicamente determinante. Por um lado, para as próprias mulheres que como sujeitos de direitos se reconheciam em uma sociedade que as valorizava e, por outro lado, para a própria Escola que, constituída única ou majoritariamente por profissionais masculinos, teve seu impulso criativo e social limitado a uma única prática e pensamento. A existência e a trajetória da Bauhaus como marco para a transformação social são inseparáveis do contexto sócio-político e econômico da Alemanha ao longo de toda a década de vinte, e os seus inícios foram de grande transcendência, especialmente para as estudantes mulheres às quais a recém-criada República de Weimar lhes conferiu o marco legal para a sua inclusão. Não obstante, a autorização estatal e cultural que os anos vinte concediam não se viu refletida totalmente na estrutura organizativa e de pensamento da instituição, que manteve uma inclinação hierárquica e discriminatória.

Tanto Josenia Hervás(16) na sua pesquisa sobre as mulheres da Bauhaus, como Ulrike Müller em Bauhaus women: Art, handicraft, design, destacam que, diante da massiva inscrição de mulheres nos cursos da Escola, Walter Gropius e o conselho de mestres tentaram diferentes formas de manipulação e controle de admissão. O temor, segundo a explicação de Ulrike Müller, é que se gerasse “uma atmosfera de amadores” (nas palavras do próprio Walter Gropius) o que levou a adoção de medias como a diferenciação no custo da matrícula entre homens e mulheres.

Em 1919, a escola contou com mais solicitações de admissão de mulheres do que de homens, e, embora Walter Gropius tenha insistido que “não havia diferenças entre o sexo belo e o sexo forte”, suas próprias palavras já demonstram a diferença entre seu discurso e seu pensamento. As pessoas designadas como do “sexo forte” ocupariam lugares na pintura, na escultura e a partir de 1927, no departamento de arquitetura da escola. O “sexo belo” por outro lado, teve que se contentar majoritariamente com os ateliês de tecelagem. Assim compila Jonathan Glancey as palavras de Ulrike Muller no artigo “Haus proud: The women of Bauhaus” publicado no The Guardian do dia 7 de novembro de 2009:

“Os estudantes da escola produziam obras radicais, mas a visão de Gropius era essencialmente medieval, embora parecesse moderna, e se inclinava por manter as mulheres no seu lugar, nos ateliês de tecelagem, realizando fundamentalmente tecidos modernos para casas de moda e produção industrial”(17).

O momento de grande abertura para as mulheres da Bauhaus e de impulso para a arquitetura ocorreu sob a direção de Hannes Meyer, em 1929. Neste período, a escola não fez diferença sexual do corpo discente, inclusive fomentava o direito das mulheres a ter as mesmas oportunidades que os homens.

Embora apenas quatro das alunas se formaram como arquitetas na Escola (Wera Meyer-Waldeck, Hilde Reiss, Annemarie Wilke e Maria Muller), este foi o âmbito de desenvolvimento e educação para futuras profissionais, como Lotte Stam Beese ou Friedl Dicker.

Estas mulheres exerceram a profissão de diferentes maneiras e deixaram a sua marca em diversos contextos sócio-políticos, embora não tenham feito parte da genealogia heroica do Movimento Moderno. Annemarie Wilke colaborou longamente com Lilly Reich e Mies Van der Rohe e participou no Pavilhão Alemão dentro da Exposição Universal de Paris em 1937. Friedl Dicker, de natureza multifacetada, trabalhou como designer gráfica para a revista Utopie: Documents of Reality (Utopia: Dokumente der Wirklichkeit), de Johannes Itten em 1921, foi professora da Bauhaus e posteriormente nos Ateliês de Artes Plásticas (Werkstätten Bildender Kunst) que fundaram em Berlim junto a Franz Singer.

Wera Meyer-Waldeck foi uma profissional de grande notoriedade também invisibilizada pela historiografia, que participou na Deutsche Werbund em Colônia, em 1949. A sua produção teórica foi publicada em revistas como Werk und Zeit da liga de ateliês alemães Deutscher Werkbundes(18) e presidiu a Comissão de Obras Públicas e Habitação a partir de onde organizou a exposição So Wohnen em Bonn, em 1951. Dedicou-se tanto ao design de interiores quanto à arquitetura, sendo uma das figuras mais notáveis e comprometidas da Bauhaus. Foi integrante e representante do círculo de mulheres alemãs Deutscher Frauenring e da federação alemã de graduadas universitárias Deutscher Akademikerinnen Bund, além de fazer parte do clube de mulheres profissionais Clube Berufstätiger Frauen.

Lotte Stam Beese, que foi integrante do Grupo dos 8 e publicou na revista Opbouw, chegou a ser a Diretora de Urbanismo da cidade de Roterdã, a partir de onde ideou, entre outros projetos, o bairro do distrito Pendrecht em Roterdã, obra que fez parte dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna do pós-guerra.

 

Projetos ou eXercícios da “outreidade”

Em relação a se existem outras formas de arquitetura e design desenvolvidas de um lugar essencialmente feminino, no artigo “Sillas fantasmas: una antología hegemónica”(19) [Cadeiras fantasmas: uma analogia hegemônica] as autoras interpretam como uma evidência de que é possível que tenha existido uma atitude inconformista por parte de algumas projetistas, que as levou a produzir e projetar objetos que se afastassem da linguagem canônica. Isto não significa que pudesse ter existido uma arquitetura ou um design exclusivamente feminino em relação aos aspectos formais, mas um lugar comum compartilhado por muitas das projetistas da época que se distanciava do discurso dominante da racionalidade e da industrialização, para focar-se em outras características vinculadas aos usos e às necessidades cotidianas.

“Enquanto o mainstream falava das máquinas de habitar […], Eileen Gray preocupava-se pela humanização, das ‘mais íntimas necessidades da vida subjetiva’. Charlotte Perriand explicou como a sua concepção buscava ‘humanizar’ a frieza das cadeiras modernas, abraçando com a almofada circular o corpo da pessoa sentada. O manifesto da empresa Artek falava de dar uma perspectiva humana à modernidade e se interessava pelos materiais naturais, o que foi feito com a reinvenção do uso da madeira, do couro e das fibras naturais. Tal é o caso das cadeiras concebidas por Lina Bo Bardi, Clara Porset, Urmila Eulie Chodhury, Eva Koppel, Karen Clemmensen, Ray Eames, e outras. A partir do seu compromisso social, Ida Falkenberg destacava que os móveis de tubos de aço, que eram uma solução recorrente nos interiores modernos, eram caros para a classe trabalhadora, e incorporava seus projetos feitos em palha nas suas casas-modelo, combinando-os, além disso, com mobiliário tradicional. Franca Helg trabalhou para a empresa Bonacina e seguia de perto cada momento do processo realizado por artesãos do ofício do vime. Interessava-se especialmente por articular as técnicas tradicionais de trabalho do material com as novas possibilidades de expressão e manipulação do mesmo. Charlotte Perriand trabalhou nesta mesma linha depois da sua viagem ao Japão em 1938”.

A discussão sobre a experiência feminina versus os padrões estéticos está aberta e supõe a confrontação de dois discursos, principalmente no campo das artes(20). Na arquitetura, concretamente, não há evidências de uma arquitetura essencialmente feminina ou feminista. Se existisse, uma das razões pelas quais não se aprecia à primeira vista uma arquitetura formal ou material próprio das mulheres, é pelas condicionantes e proibições sociais historicamente impostas: não ter um início próprio e a desvantagem temporal no acesso à educação institucional. As estruturas institucionais de formação não hesitaram em reformular a implicância do ingresso das mulheres, mas que continuaram com os seus programas e a sua linha de pensamento que, como foi mencionado, teve a partir da sua própria gênese o homem caucasiano de classe média alta como padrão de referência.

Entretanto, o que sim é incontestável é que existem formas diferentes de ver o mundo e de nos relacionar, experiências diversas marcadas pela categoria do gênero como também de classe ou origem, que bem podem se manifestar e incidir na produção e desenvolvimento profissional. Porque, tal como expressa Zaida Muxí, “a realidade é distinta, não é neutra, e que homens e mulheres percebem de maneira diferente o espaço e o seu entorno, impacta na produção arquitetônica (…)”.

Desta forma, se a experiência de quem projeta não é universal nem neutra, ou pelo menos não aspira a isto, não dará respostas universalmente válidas ou dominantes. Podemos falar de “outra” arquitetura, uma arquitetura fora do padrão, próxima às pessoas de acordo com as suas necessidades e experiências concretas, ou diferenciada também em relação aos processos de gestão e participação, mais comprometida com os valores ambientais, econômicos e sociais.

As formas de exercer a profissão e os seus resultados podem, portanto (e sem o afã de estabelecer classificações), responder de maneira própria, essencialmente ligada à identidade, gênero, condição de classe ou cultural, ou se ver condicionada pelos cânones estabelecidos e esperados. Os primeiros buscam dar solução particular a problemas concretos e os segundos dão resposta preestabelecidas e normalizadas. A priori, nenhuma é exclusiva de homens e/ou mulheres, mas é possível formular alguns interrogantes e matizes sobre o assunto.

Por um lado, a daquelas arquitetas destacadas cujos interesses estavam longe de consentir o mainstream da arquitetura moderna promovidos por uma atitude inconformista derivada dos próprios interesses ou da experiência, ambas mediadas por circunstâncias pessoais e identitárias: migrações, capacidades, papéis de gênero, ou aspectos culturais. Este é o caso da consultora de habitação britânica Elizabeth Denby, que, do mesmo modo que Margarete Schütte-Lihotzky da Áustria, Carmen Portinho do Brasil ou a norte-americana Catherine Bauer, realizaram contribuições de alto conteúdo social e político (e de baixo impacto midiático), tendo todas elas em comum a pesquisa sobre a habitação e a cidade e a defesa da emancipação das mulheres como sujeitos da modernidade. Nestes casos, a exclusão no relato arquitetônico (da figura e da obra) apresenta uma dupla condição: são suprimidas por serem mulheres e por falta de interesse. Porque o certo é que temáticas periféricas ou alheias ao relato imperante, mas desenvolvidas por homens, não têm sido tão duramente silenciadas nem nos livros nem consequentemente no currículo acadêmico do ocidente. Patrick Geddes, Lewis Mumford ou posteriormente John Turner ou Bernard Rudofsky são exemplo desta dissonância.

Por outro lado, estão aquelas profissionais do início de século que, embora contribuindo com diferenças, seja pelo simples fato de ser mulheres, limitaram-se a um papel profissional determinado e apoiado pela própria disciplina, de origem e desenvolvimento masculino, como vimos anteriormente. Isto resultou em produções que, embora inovadoras, não se afastaram do esperado, pois faziam parte dos cânones. Esta maneira de exercício pode estar ligada a que a conquista da igualdade no âmbito do trabalho e profissional do início do século estava sujeita à obtenção dos mesmos direitos daqueles que gozavam os homens. Desta forma, a incursão ao mundo do trabalho de muitas mulheres implicou a adaptação a um sistema existente cujos papéis e formas já estavam configurados.

Estes dois posicionamentos ou abordagens sobre a experiência projetual e o desempenho da profissão talvez não sejam nada mais do que o reflexo, com todos os seus matizes, das duas posturas feministas mais importantes do século XX, distintas e complementárias: o feminismo da diferença e o feminismo da igualdade.

 

Desafiar os marcos conceItuais que nos foram dados

A inclusão das mulheres na história e o próprio desenvolvimento da história das mulheres que tem sido produzido nos últimos quarenta anos não só trouxe novas questões para a história, mas também obrigou, como afirma Gerda Lerner em Why history matters: Life and thought, a tratar com conceitos e valores mais profundos aquilo que os estudos históricos e o que todos os campos intelectuais organizam. Tal situação nos obriga a perguntar não apenas o porquê que determinados conteúdos foram omitidos, ignorados ou trivializados, mas, como foi mencionado no início sobre os relatos dominantes, quem decide o que deve ser incluído.

Constata-se que se iniciou um processo com o propósito de questionar e desafiar o marco conceitual que organizou os conhecimentos tradicionais, aqueles que deixaram de fora as experiências, as atividades e as ideias da metade – ou mais – da humanidade. Por outro lado, diz Lerner, desafiamos o marco conceitual porque é elitista, pois a história omite não apenas todas as mulheres, mas também a maioria dos homens, os de raças não brancas, de diversas etnias, e até há pouco, os de classes mais baixas. A própria história define estes grupos como menos importantes do que os grupos incluídos. Os desafiamos, porque nega nossa própria experiência da realidade. Porque vivemos em um mundo em que nada acontece sem a participação ativa de homens e mulheres e, no entanto, constantemente nos mostra um mundo passado, em que a ação dos homens era constatada e a das mulheres, uma presunção. Lerner enfatiza que este critério é falso e, portanto, inaceitável, porque a história das mulheres demonstrou que elas são e sempre foram partícipes na formação dos acontecimentos, tanto no seu desenvolvimento como no tempo presente. A história da arquitetura do século XX não é uma exceção.—

1 Lopez Navajas, Ana: Análisis de la ausencia de las mujeres en los manuales de la ESO: una genealogía de conocimiento ocultada. Espanha: Ministério da Educação, 2014.
2 Também denominado “querelle des femmes”, este foi o nome pelo qual se conheceu o debate literário e acadêmico que aconteceu ao longo de vários séculos a partir do final do século XIV na Europa medieval até a revolução francesa, mas que também foi utilizado durante todo o século XX. A primeira mulher que intervém neste debate de maneira pública é a escritora italiana residente na França Christine de Pizan (1364-1430) que em 1405 escreve La ciudad de las damas. O termo “a questão da mulher” também foi utilizado pela teoria marxista.
3 Termo criado em 1989 pela feminista e acadêmica do Direito especializada em teoria crítica da raça, Kimberlé Williams Crenshaw.
4 Agrest, Diana: Architecture from without: theoretical framings for a critical practice, Estados Unidos: MIT Press, 1991.
5 Ginopia é um neologismo criado na disciplina legal como forma de nomear a omissão do ponto de vista da mulher em casos de violência machista. Definição de Marina Morelli Núñez, Doutora em Direito e Ciências Sociais, Uruguai.
6 Vale ressaltar que revisar a formação destes grupos constitui um universo restrito de estudo e que muitas das profissionais que não pertenceram a estes espaços de visibilidade não retornarão à memória. Como vimos ao tratar a interseccionalidade do gênero com a etnia e a origem, ficam de fora desta vitrine moderna as mulheres arquitetas negras e não europeias, salvo exceções. É certo também que existiram arquitetos masculinos invisibilizados pela atenção prestada a alguns poucos, mas é pertinente lembrar que, embora algumas questões tratadas aqui impliquem um paralelo com outros grupos, estes não fazem parte do objetivo desta reflexão.
7 Os arquivos de familiares, universidades, centros de ensino ou fundações de diferentes cidades que buscam conservar a memória patrimonial constituem fontes indispensáveis para a visibilização de tantas contribuições ocultas pela historiografia. Neste sentido, os livros biográficos publicados sobre Lilly Reich, Jaqueline Tyrwhitt, Catherine Bauer, Charlotte Perriand ou Eileen Gray entre outras autoras, mostram como a intensa pesquisa evidencia materiais inéditos que permaneceram ocultos e alheios ao corpo historiográfico dominante.
8 Schütte-Lihotzky, Margarete: La vita combattiva di una donna architetto dal 1938 al 1945, Itália: Alinea, 1997.
9 Minoli, Lorenza: Dalla cucina alla città: Margarete Schütte-Lihotzky, Itália: Franco Angeli, 1999.
10 Em “Gesto e progetto: Charlotte Perriand racconta il Giappone” em AIS/DESIGN, 2015.
11 Rossi, Catherine: Existence, Experience and Representation: Women and Design in Post-War Italy, 2006.
12 “A Thousand Women in Architecture”, Architectural Record 103 (Março 1948); parte 2, 103 (Junho 1948): 108–15.
13 Em Women in architecture. 1975, 2015. Tese de Doutorado, Universidade Politécnica de Valência (UPV), 2016.
14 Também publicado em: Darling, Elizabeth; Whitworth, Lesley: Women and the making of built space in England, 1870-1950, Inglaterra: Ashgate, 2007.
15 McQuaid, Matilda: Lilly Reich: designer and architect. Estados Unidos: Museum of Modern Art, 1996.
16 Hervas y Heras, Josenia: Las mujeres de la Bauhaus: de lo bidimensional al espacio total, Argentina: Nobuko/Dise‘O Editorial, 2015.
17 Müller, Ulrike: Bauhaus women: Art, handicraft, design. Flammarion (2009) no artigo de Jonathan Glancey para o The Guardian, 2009.
18 Vadillo-Rodríguez, Marisa. “La Bauhaus y sus ‘experimentos innecesarios’: las arquitectas prófugas”, em Arte, Individuo y Sociedad, Espanha: Universidad Complutense de Madrid, 2013.
19 Arias Laurino, Daniela; Marsiani, Florencia; Moisset, Inés; Muxí, Zaida: “Sillas fantasmas: una antología hegemónica”, Espanha: Res Mobilis, Universidad de Oviedo, 2017.
20 Segundo Linda Nochlin, não parece existir uma “essência de feminidade” como qualidade comum que vincule estilos das artes plásticas.
Teoria  |  Arquitetas da modernidade. Os relatos historiográficos hegemônicos e aqueles “outros” – Daniela Arias Laurino
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