Prática  |  moarqs
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O moarqs é um escritório de arquitetura fundado e dirigido pelo arquiteto Ignacio Montaldo. Sediado em Buenos Aires, o escritório possui uma estrutura flexível e dinâmica que lhe permite trabalhar em projetos de diversas escalas e programas. O trabalho do moarqs começa com uma leitura exaustiva das condicionantes técnicas, culturais, estéticas e econômicas do projeto e propõe transcender os regionalismos em busca de uma identidade arquitetônica integral da América Latina.
Os três projetos publicados a seguir trazem diversos programas construídos com materiais e técnicas que demonstram soluções pragmáticas, desde a escala do detalhe construtivo até o contexto urbano.

Estamos interessados em como o mundo à nossa volta pode ser descrito em termos de convenções e de fenômenos físicos. As tipologias fornecem imagens familiares que podem provocar certas respostas emocionais coletivas. As unidades materiais, mais topológicas, criam um certo tipo de atmosfera que pode desencadear uma reação quase fisiológica.

Adam Caruso. The feeling of things. Escritos de arquitetura.

Uma análise da obra construída e dos projetos realizados para diferentes concursos do escritório moarqs não tarda muito em revelar os vetores que, de forma geral e persistente, e de uma maneira permeável e flexível a programas e realidades contextuais particulares, percorrem os seus trabalhos. Programa e tipologia, material e técnica, ofício e academia. As proposições resultantes e principais mostram uma certa sobriedade expressiva e uma continência formal, que deriva de uma relação direta – nunca literal ou unidirecional – entre matéria, tipologia, técnica construtiva e forma. Os projetos são “pensados durante a construção”; assim, o resultado é a escolha consciente de um material, de um componente construtivo e/ou de um sistema estrutural que durante os processos de articulação e modificação, constrói e contém um espaço, estabelece a sua métrica e define um limite que lhe confere propriedades físicas e sensoriais concretas. Não existem apriorismos formais desligados de uma concretização material plausível, mas sim, algumas vontades prévias que poderiam ser discutidas, ligadas a conotações fenomenológicas relacionadas com os usos da técnica ou com certas alterações tipológicas, provenientes da sua interação com o contexto imediato. Esse processo é claramente visível nas obras domésticas de menor escala, as micro-arquiteturas, e em certos detalhes recorrentes, onde esta relação é mais direta e imediata, mas também é utilizado nos projetos para concursos de equipamentos públicos, edifícios residenciais e de escritórios de maior escala e complexidade.

Nesta linha podemos inserir o Armazém em Caseros, datado de 2018, cujas diretrizes gerais já vinham sendo esboçadas no projeto do escritório para o centro de atividades do concurso “Hitos Ecuménicos”, de 2011 (Imagem 1). Trata-se de um edifício industrial, situado num contexto urbano com um forte perfil industrial. Uma infraestrutura urbana resolvida sem grandes complicações quando analisados seus aspectos tipológicos e econômicos: um envoltório que configura um grande espaço indiferenciado longitudinal, definido por uma estrutura de pórticos com grandes vãos entre pilares, confeccionados com perfis estandardizados. Um fechamento leve de chapa ondulada galvanizada pré-pintada, com uma camada de isolamento térmico de lã de vidro e ráfia de polipropileno branco como acabamento interno e barreira de vapor. Junto à parede divisória de alvenaria existente, foi projetado um pequeno núcleo de serviços e um mezanino para escritórios, liberando o restante do espaço. O volume é rematado por um telhado de duas águas ligeiramente inclinado, cujo cume é elevado para gerar uma claraboia linear que assegura uma iluminação difusa e constante.

1 Centro de Interpretación e Hitos Ecuménicos no Parque Arqueológico Colomichico (concurso), Neuquém, Argentina, 2011.
2 Pavilhão Hinrichsen, Buenos Aires, Argentina, 2015. Em parceria com Ottolenghi. Fotografia: Albano García
3 Edifício Astillero, Buenos Aires, Argentina, em construção. Em parceria com BMA.

Não há excesso de elaboração nos detalhes, nem dimensionamentos estruturais forçados, nem materialidades para além dos esperados. A dificuldade reside na inserção de uma tipologia cuja natureza pressupõe a continuidade infinita da dimensão longitudinal de um volume em um terreno específico, atípico, triangular e em esquina, dentro de um tecido urbano consolidado. É nesse ponto que uma série de mecanismos de manipulação se ativam, na tentativa de transcender a natureza abstrata da tipologia. Por um lado, o volume se reclina para uma das longas margens do terreno e ao chegar na aresta, ao invés de acabar em um fundo plano, promove um giro através da inserção de três meios-pórticos, para ocupar toda a largura do chanfro e adaptar-se à sua geometria. Por outro, um dos planos verticais resultantes, alinhado com a lateral do terreno, prolonga-se e desprende-se do volume interior, e assim fecha o pátio, o que realça a sua natureza de recinto e estende a intervenção à totalidade do terreno. A continuidade obtida é enfatizada pelo uso do mesmo material de fechamento do galpão, placas pretas pré-pintada, e dá sentido ao desejo monolítico da intervenção. Desse modo, a proposta consegue construir e articular um espaço interno e externo dentro de um mesmo volume, e cria continuidade a partir de uma tipologia adaptada, mas perfeitamente legível. Ao mesmo tempo, resolve-se a questão urbana da intervenção ao reforçar o chanfro como origem da materialização do projeto e desarmar o volume total, além de modular a profundidade através de pórticos e planos horizontais que enriquecem a sua percepção ao ser visto da rua.

Outro projeto contemporâneo ao anterior, a Casa Tacuarí, também adota um forte compromisso com o contexto urbano onde está inserido. Esta é a proposta para a reabilitação e ampliação de uma típica “casa chorizo(1) da década de 1920, no histórico bairro portenho de Barracas. Também aqui, a construção em seco e a chapa pré-pintada preta são utilizadas como recursos expressivos. Mas, neste caso, a solução não surge das necessidades racionais e econômicas intrínsecas a uma tipologia, mas do desejo expresso de diferenciar de forma clara as operações que compõem a ampliação daquelas operações que auxiliaram na reabilitação da casa original. Assim, as dicotomias são potencializadas: novo (construção em seco) preexistência (construção úmida). As operações sobre o setor preexistente realçam as qualidades construtivas e espaciais da tipologia de casa para aluguel, sem cair em mimetismos históricos ou nos ciúmes conservacionistas. O essencial e as proporções espaciais que derivam da métrica original são recuperados e permitem a sobrevivência da tipologia devido à sua adaptação às novas realidades domésticas. Foram também mantidos os elementos construtivos representativos mais relevantes – revestimentos, pavimentos, estuques, esquadrias, detalhes de ferragem e serralheria, pátio e galeria – e decidiu-se consolidar a fachada, embora sem empreender uma restauração integral, e assumir o valor das texturas, da sobreposição de rebocos e dos vestígios de vegetação. Esta abordagem guiou a decisão de dispor o volume da ampliação, localizado no primeiro andar, recuado com relação à linha da fachada, além de orientá-lo perpendicularmente a esta última, reduzindo a sua presença quando visto da rua e buscando a melhor orientação para os espaços internos. Portanto, o novo volume maximiza a sua condição abstrata e a sua independência em relação ao térreo, que começa a cumprir o papel de base. Este novo objeto, que a princípio é estranho – pela forma e material – ao que é mais típico do imaginário desse contexto, estabelece um diálogo com outro tipo de paisagem, menos evidente mas valiosa e mais característica do tecido urbano no qual está inserida: a dos terraços, a do nível +4,50, e todos os objetos que ali se localizam: caixas d’água, grades, vestígios de muros, irregularidades do planejamento urbano, vegetações intencionais ou espontâneas e outras heterogeneidades construídas ou imaginadas. A tecnologia da construção a seco, análoga à utilizada em Caseros, é aqui desenvolvida com outra especificidade de detalhe, de modo a se alinhar com a própria natureza doméstica e de pequena escala do pedido pelo cliente. Um volume de steel-frame sobre uma nova laje do tipo steel-deck, com as suas correspondentes camadas de isolamento térmico e barreiras de vapor, e a chapa preta pré-pintada como acabamento. A fachada norte incorpora um forro técnico que esconde os sistemas das aberturas corrediças no seu interior e algumas venezianas cegas que, quando fechadas, mantêm-se alinhadas com a aresta exterior da fachada e, quando abertas a noventa graus, ajustam-se à aresta externa de um beiral linear de oitenta centímetros que percorre a longitude do objeto. O sistema de venezianas e o beiral criam um novo volume intermediário, semiaberto, que protege a fachada da incidência solar da orientação noroeste, além de produzir um ritmo de luz e sombra e introduzir uma noção que a maioria das propostas do escritório aborda: a consideração da fachada como um mecanismo com uma espessura que transcende a sua própria dimensão métrica para incorporar beirais, galerias, brise-soleils, espaços intermediários ou para definir a posição das esquadrias. Os mecanismos acabam por modular e dar ritmo à fachada, embora nem sempre coincidam com o módulo estrutural principal. Desde o pavilhão Hillrichsen (Imagem 2), onde as esquadrias se localizam nos intradorsos ou extradorsos da fachada de concreto para poder abrigar a cortina de acordo com a sua orientação, até o edifício de Astilleros (Imagem 3), onde os brise-soleils verticais orientáveis e espaços semicobertos se revezam, seguindo o módulo de estrutura e de composição da planta, para criar um poderoso ritmo quincunce.

1  “Casa chorizo” é uma tipologia de habitação muito utilizada durante o fim do século XIX e começo do século XX na Argentina. Sua organização parte de um pátio lateral prolongado que servia de acesso a todos os cômodos, os quais eram dispostos linearmente e mantinham conexão entre si. Daí o nome “chorizo” (literalmente, “linguiça”), pela forma em que as linguiças estão unidas.

Nesse sentido, a mais recente obra do escritório, o edifício residencial multifamiliar Donado, com quatro andares, além do térreo, situado em um lote de 8,66 metros no bairro portenho de Saavedra, apresenta uma fachada caracterizada pela inserção de varandas estreitas que se projetam para dentro, uma para cada unidade habitacional, dispostas alternadamente por cada andar. Esses elementos estabelecem um contraponto com os painéis de vidro de grandes dimensões, quase coplanares ao eixo de edificação que fecham o resto do ambiente. Neste caso, o ritmo se desliga da estrutura, que é projetada nas paredes divisórias e no fechamento dos ambientes, e também de qualquer dimensão modular reconhecível para além da divisão entre unidades a cada andar. No entanto, ele parece obedecer ao desejo expresso de enfatizar as propriedades duais fenomenológicas do vidro: como sólido opaco, capaz de refletir o que está acontecendo ao seu redor e/ou como lâmina que permite a máxima continuidade visual entre o interior e o exterior. Assim, a sensação a partir dos apartamentos, cuja distribuição em eixos paralelos à fachada procura libertá-los de usos secundários, é a de habitar um exterior do qual, paradoxalmente, penetra-se no interior: a varanda em negativo. As dimensões da superfície envidraçada do chão ao teto, a minimização dos caixilhos de alumínio e a ausência de balaustradas ou parapeitos contribuem para isso, assim como também a neutralidade da paleta de materiais utilizada para resolver os espaços interiores. A partir da rua, o efeito é invertido e a fachada se torna uma amálgama dinâmica de reflexos e sombras. Os estampados de alumínio que dobram as suas partes opacas, além de garantir maior isolamento, proteção e ordem visual, ajudam a realçar o efeito devido às propriedades refletoras de sua superfície.

4 Casa La Paz (projeto), Entre Rios, Argentina, 2014.
5 Escritórios CCDH, Buenos Aires, Argentina, 2008. Em parceria com Ottolenghi. Fotografia: Daniela Mac Adden.
6 Centro Cultural Salta 2141 (concurso), Rosário, Santa Fé, Argentina, 2018.
7 Casa Lamas, Buenos Aires, Argentina, 2015. Em parceria com Ottolenghi. Fotografia: Albano García.

O trabalho sobre as propriedades sensoriais dos materiais e o seu tratamento podem rapidamente criar vínculos entre os projetos do escritório. Esse trabalho que vai muito além das propriedades mecânicas dos materiais, sua associação com técnicas de instalação pertinentes e o conhecimento dos tipos e dos seus graus de variabilidade, permite traçar vetores que permeiam a quase totalidade dos seus projetos. O tijolo, cujo sistema de armamento define a parede estrutural da casa de La Paz (Imagem 4), torna-se uma tela e uma delicada camada de proteção do sistema de paredes composto pelas fachadas dos escritórios da CCDH (Imagem 5). Por sua vez, o concreto que forma os elementos pré-fabricados da gelosia-edifício, etérea na sua massa, para o memorial Salta 2141 (Imagem 6), permite projetar o potente pátio-estrutura da Casa Lamas (Imagem 7) ou a complexa caixa-artefato do pavilhão Hinrichsen. A madeira utilizada nas casas em Meliquina 1 (Imagem 8) e 2 (Imagem 9) forma uma tectônica de painéis, enquanto a proposta de Ochoquebraas (Imagem 10) recupera a concepção mais abstrata de entrelaçamento no desenvolvimento de uma escada.

8 Casa Meliquina I, Meliquina, Neuquém, Argentina, em construção.
9 Casa Meliquina II (projeto), Meliquina, Neuquém, Argentina, 2016.
10 Casa em Ochoquebradas (projeto), Região de Coquimbo, Chile, 2019.

A matriz de materiais dos projetos do escritório é limitada: tijolo, concreto, madeira e pré-fabricados industriais, em alguns casos. As suas técnicas construtivas são diversas, nem sempre ortodoxas, mas coerentes e inteligíveis. A concretude é precisa, definida e se afasta de todo ensimesmamento e virtuosismo. Tudo isso coloca o moarqs no seu lugar – sem ser preciso recorrer a reducionismos geográficos – e no seu tempo – entendendo-o como um continuum a-histórico. O escritório define propostas abertas e maduras que permitem a conformação de um programa claro, mas não totalmente determinado. Nessa ambiguidade, aparentemente longe do pretendido rigor e clareza propostos nos seus trabalhos, reside a força e o crescimento seguro dos projetos. Partindo do ofício e da serenidade, ou da serenidade do ofício.—

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