Prática | Plan:b – Hotel Click Clack Medellín – O valor do urbano – Felipe Walter
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Em que medida o controle dos espaços urbanos modifica a noção do que é autenticamente público? Essas ações geram valor agregado ou deterioram o entorno? Embora não exista uma resposta única e objetiva para estas questões, o texto “O valor do urbano”, de Felipe Walter, parte delas para traçar uma análise do Hotel Click Clack Medellín.
Num contexto regido durante décadas pelo conflito armado, o caso do hotel colombiano – de caráter privado, mas com um térreo aberto ao público – estabelece precedentes para a incorporação de espaços que, embora não sejam públicos, funcionam como ponto de encontro para diferentes grupos, além de reativar as áreas circundantes. Assim, o projeto do Plan:b arquitectos oferece um contraponto a uma série de espaços que, nos termos do autor, relegaram a sua condição pública em proveito de uns poucos usuários, através da privatização parcial ou total das suas instalações. Neste cenário, no qual questões como a noção do que é próprio e do que é comum entram em cena, parece pertinente perguntar onde está a legitimidade dessas ações.


O VALOR DO URBANO
Autor Felipe Walter
Em 1995, Don Mitchell publicou The End of Public Space? People’s Park, Definitions of the Public, and Democracy(1), texto no qual analisa a situação do espaço público na cidade contemporânea. A partir do caso do People’s Park em Berkeley(2), Estados Unidos, Mitchell explica como as transformações físicas e a construção de instalações esportivas que buscavam manter um maior controle e vigilância, significaram a perda da noção do público naquele lugar. Da mesma forma, o autor afirma que os espaços públicos se tornaram lugares controlados e organizados para a recriação de setores “apropriados”. Esta realidade é oposta ao que Mitchell entende como espaço público: um lugar sem restrições, onde os movimentos políticos e sociais possam se reunir livremente e que é fundamentalmente “representativo”, ou seja, apropriado e vivido, em alusão à tríade espacial de Lefebvre.(3)
Em 2010, em referência ao texto de Mitchell, David Madden publicou Revisiting the End of Public Space(4). O artigo aborda a mesma problemática levantada por Mitchell, tomando como exemplo a transformação do Bryant Park(5) de Nova York. Segundo Madden, a entidade particular à qual a prefeitura da cidade cedeu a administração empreendeu um processo de organização e intensa programação temática no local. Esta situação resultou na exclusão dos inúmeros grupos que faziam uso do parque, reduzindo esse uso a um público específico para o qual os novos eventos estavam destinados.
Além do mais, no livro The fall of public man(6) [O declínio do homem público], de 1977, Richard Sennett, de maneira quase nostálgica, chama a atenção sobre a perda da noção de democracia no espaço urbano. Nesta mesma linha, em Variations on a Theme Park: the New American(7), Michael Sorkin argumentou como o espaço público das cidades dos Estados Unidos perde sua condição genuinamente política e democrática para se converter em um parque temático.
Estas discussões também surgiram recentemente em Londres: em 2017, o jornal The Guardian publicou “Revealed: the insidious creep of pseudo-public space in London”. O artigo expõe um inventário de 46 espaços aparentemente públicos localizados na capital do Reino Unido, mas que, por serem propriedades de empresas privadas, são permanentemente vigiados e controlados, o que impede a manifestação do exercício público, da democracia e da diversidade – nas palavras de Mitchell, Madden e Sorkin.
No caso da América Latina, a aproximação crítica a estas questões têm sido amplamente abordada por Teresa Caldeira. No seu livro City of Walls: crime, segregation and citizenship in São Paulo(8), a autora analisa a relação entre o crime, a segurança, a emergência de conjuntos residenciais privados cercados, as práticas de vigilância e seu impacto na segregação social, a experiência urbana e a noção de cidadania, onde toma como principal caso de estudo a cidade de São Paulo.
O Hotel Click Clack Medellín, na Colômbia, é um bom exemplo para abrir esta discussão e analisar as controvérsias e interesses que convergem atualmente em um país afetado durante décadas pelo conflito armado, onde a noção de cidade como cenário do público e do democrático é um conceito em construção.
O edifício, projetado pelo escritório de arquitetura Plan:b arquitectos e concluído em 2019, ocupa três lotes de um mesmo quarteirão. Esquematicamente, pode ser descrito como uma torre em forma de “L” erguida sobre um térreo aberto que, devido à sua relação com as construções vizinhas, conforma um pátio interior alongado.
A forma em “L” do volume surge do lote localizado no setor sul do quarteirão, que se conecta através dos fundos com os outros dois lotes que estão ao norte. Esta condição abre a possibilidade de gerar uma conexão de pedestres entre as duas ruas que passam pelo bairro no sentido Leste-Oeste – 10A e 10B – e a Avenida 37, que delimita o quarteirão no lado leste.
A torre é constituída por sete andares que abrigam apartamentos de 16 m² a 35 m² e espaços de uso comum como academias, áreas de trabalho e salas de reuniões. Inclui também uma piscina e um bar no terraço, além de quatro restaurantes e uma galeria de arte no térreo. Cada um destes espaços é administrado de forma independente e pode ser programado para a realização de eventos e festejos.
A configuração da planta de cada um dos andares não varia significativamente da tipologia padrão dos hotéis, com suas circulações intermináveis e portas em ambos lados. No entanto, para garantir a incidência de luz natural, permitir a conexão visual com o exterior e combater a claustrofobia nestes espaços, o percurso é acompanhado por algumas fissuras em forma de sacadas ambientadas com vegetação.
Tanto na parte externa como na interna, predominam acabamentos pretos e metálicos. A solidez e homogeneidade que a cor preta confere ao volume externo contrasta com a diversidade de materiais e composições dos edifícios adjacentes. Portas adentro, a cor preta é acompanhada por apliques de madeira e luzes tênues que indicam o acesso a cada um dos apartamentos. A mistura dos materiais e o design de interiores não está longe da estética industrial nova-yorkina globalizada e quase genérica presente também em empresas como a WeWork.
Embora os jardins e espaços compartilhados localizados na cobertura do edifício sejam de uso privativo dos clientes , já que devem ser superados uma serie de filtros para chegar a eles, as tensões entre o público e o privado e as complexidades do espaço urbano como enunciado por Mitchell, Madden, Sorkin, Sennet e Caldeira, emergem no térreo do projeto. Como descrito anteriormente, o térreo conecta três vias de circulação de pedestres em diferentes níveis através de pequenas praças e escadas. O projeto consiste em quatro acessos que convergem em uma praça central a céu aberto. Entre os acessos e a praça, encontram-se as áreas de mesas de cada restaurante que, embora abertas, veem-se delimitadas e segregadas entre si por meio de canteiros e outros elementos móveis, como bancos e treliças. Cada uma das entradas é permanentemente vigiada por seguranças.
Embora os arquitetos descrevam térreo do hotel como um espaço semipúblico, a condição deste lugar coincide com os espaços que para Mitchell e Madden exemplificam a perda do público, já que são permanentemente regulados, controlados e programados para um tipo de usuário específico. Tal como o Parque o People’s Park em Berkeley e o Bryant Park em Nova York, o primeiro nível do Hotel Click Clack Medellín está desprovido dos valores democráticos e políticos do espaço público a que estes autores, e fundamentalmente Richard Sennett, recorrem nas suas críticas.
No entanto, a origem do primeiro andar do hotel está longe da história do People’s Park e do Bryant Park, bem como das transformações de onde emergem as complexidades associadas à perda do público que Mitchell e Madden descrevem. Ambos os parques já haviam sido apropriados por um determinado público antes mesmo de possuírem uma administração formal e uma temática proposta. O hotel, por outro lado, foi construído em um lote privativo, no qual a decisão de abrir o primeiro andar e permitir seu uso – controlado – surge como uma ideia dos promotores e arquitetos. Em vez disso, poderiam ter optado, e seria legítimo, por cercar todo o lote e reservar o espaço para uso exclusivo dos clientes do hotel e dos outros serviços que ele oferece.
A determinação de proporcionar um espaço aberto torna explícita a tensão entre os diferentes grupos que podem fazer uso dele (pedestres, clientes dos restaurantes e hóspedes do hotel, entre outros). Portanto, podemos nos perguntar até que ponto este tipo de local, de caráter claramente privado e cujo uso é controlado, monitorado e programado, contribui para a melhoria ou deterioração do entorno urbano.
Em primeiro lugar, é questionável porque assume-se o risco de abrir o lote para uso controlado, e assim expor o projeto a debates teóricos como o mencionado neste artigo, insignificantes para a maioria dos cidadãos, mas também expor a riscos tangíveis. Dentro destes incluem-se o possível aumento da delinquência e a circulação de pessoas que não coincidem com o público e a imagem do hotel: pessoas em situação de rua ou manifestações não associadas ao programa do edifício, como a presença de artistas de rua e vendedores ambulantes.
Uma resposta possível que explicaria a razão pelo qual os promotores do projeto assumiram estes riscos é o valor agregado à esses espaços devido ao contato com o ambiente urbano de Medellín. Embora a tipologia dos restaurantes possa ser facilmente associada à vida urbana de cidades como Buenos Aires, Cidade do México ou São Paulo, seu ressurgimento em Medellín é recente e coincide com a diminuição da insegurança na cidade, após o período de violência vivido nas décadas de 80 e 90 já mencionado.
Anteriormente confinados a centros comerciais, clubes sociais privativos ou simplesmente às suas casas devido à percepção muito elevada da insegurança, os grupos de renda alta valorizam hoje os espaços que lembram a vida urbana de capitais europeias e, em certa medida, a relação com a rua que Jane Jacobs almeja em The Death and Life of Great American Cities(9). Espaços como este teriam sido talvez impensáveis há dez ou quinze anos.
Além disso, poderíamos assumir que, ao atrair mais atores para a vida urbana, espaços como o Click Clack Medellín afirmam a sua presença na cidade à medida que incentivam “conviver na diferença” [living together in difference], um conceito que desenvolve Iris Marion Young em Justice and the Politics of Difference(10). Segundo Young, devemos promover espaços de contato e intercâmbio de diferentes pessoas sem exclusão, partindo da premissa que todos somos seresiguais no espaço urbano. Embora o Click Clack Medellín não seja um lugar de convergência de diversos grupos, a presença destes setores particulares no espaço urbano promove o contato com diferentes públicos.
1 Mitchell, Don: The End of Public Space? People’s Park, Definitions of the Public, and Democracy: Departamento de Geografia, Universidade de Colorado, 1995.
2 Os terrenos foram adquiridos em 1967 pela Universidade da Califórnia em Berkely para a construção de residências para estudantes. No entanto, devido à escassez de fundos, o projeto foi abandonado. Em 1969, um movimento estudantil, em conjunto com um grupo de ativistas e comerciantes locais, tentou tomar o parque para convertê-lo em um lugar de congregação. A universidade decidiu cercar o parque, o que desatou fortes manifestações que conseguiram manter o caráter público do parque até que a universidade decidiu transformá-lo em um lugar para a prática esportiva de seus estudantes.
3 Em 1974 Henri Lefebvre publicou La production de l’espace. Neste livro, o autor define uma triada conceitual composta pela prática espacial, as representações do espaço e o espaço representacional. A primeira se refere a como é percebido o espaço na cotidianidade. A segunda alude aos espaços como resultados da planificação, lugares ordenados e controlados. A terceira, refere-se ao espaço como lugar apropriado, ocupado e utilizado.
4 Madden, David: “Revisiting the End of Public Space”. City and Community 9, 2010, pág. 187 – 207.
5 Aberto inicialmente como parque no final de 1840. Posteriormente, passou a abrigar um pavilhão e parte da Biblioteca Pública de Nova York. Em 1930, retomaram sua condição de parque e após um período de deterioro, foi renovado e inaugurado novamente no início dos anos 90. Embora o parque seja propriedade do Departamento de Parques e Recreação de Nova York, sua administração e manutenção está a cargo da Corporação Bryant Park. Seu funcionamento não conta com recursos públicos, sendo financiado com impostos pagos pelos imóveis vizinhos, com a renda provinda dos comércios concessionados e com os lucros obtidos com a realização de eventos.
6 Sennet, Richard: The fall of public man, Estados Unidos: Knopf, 1977. O texto faz uma alusão quase nostálgica ao conceito do público, surgido na cultura grega e idealizado pela sociedade ocidental. Sennett analisa como a mudança na conformação física e administrativa das cidades nas décadas anteriores aos anos 70 confundiu e diminuiu o caráter público e a condição política do homem no espaço urbano.
7 Sorkin, Michael: Variations on a Theme Park: The New American, Estados Unidos: Hill and Wang, 1992. Através do estudo de projetos urbanos realizados na segunda metade do século XX, o livro explica como os novos entornos (centros de negócios, centros comerciais e praças e parques privados, mas de caráter público) afetaram negativamente o desenvolvimento da vida pública nas cidades estadunidenses.
8 Caldeira, Teresa P. R. City of Walls: Crime, Segregation and Citizenship in São Paulo, Estados Unidos: University of California Press, 2000. Esta autora talvez seja a acadêmica que mais estudou e melhor descreveu as formas urbanas associadas a conjuntos urbanos fechados (fenômenos de “gating” e “walling” em inglês), seus impactos e sua relação com a segregação socio-espacial, a violência e a percepção de segurança nas cidades latino-americanas.
9 Jacobs, Jane: The Death and Life of Great American Cities, Estados Unidos: Random House, 1961.
10 Young, Iris Marion: Justice and the Politics of Difference, Estados Unidos: Princeton University Press, 1990.
Neste sentido, é importante analisar até que ponto estes lugares, com sua oferta de eventos e serviços para a classe alta, complementam a programação da cidade e atraem novos talentos, grupos e investimentos. Segundo a direção do hotel, a maior ocupação coincidiu com eventos como o Colombiamoda, que atende ao potencial criativo da indústria têxtil do país. Embora seja fundamental para uma cidade promover a equidade através da construção de infraestrutura para as pessoas de baixos recursos, como Medellín já vem fazendo nas últimas décadas, também é importante planejar a retenção e atração de talento humano a partir do programa que a cidade oferece.
Os dois pontos anteriores abordam questões sociais ligadas ao valor do urbano, o contato entre diferentes grupos no espaço da cidade e o planejamento do programa da cidade como estratégia de retenção e atração de talentos. O terceiro ponto se centra na análise de como o projeto contribuiu para a melhoria do entorno construído da cidade. Dois dos três lotes que o hotel ocupa eram anteriormente cercados por muros, razão pela qual a rua costumava permanecer vazia e a escuridão prevalecia à noite.
A construção do hotel envolveu a demolição destes muros e a recuperação da esquina. Atualmente, mesmo sendo permanentemente vigiado e controlado, o encontro entre a Rua 10B e a Avenida 37 apresenta maior movimentação de pedestres. As calçadas foram recuperadas de acordo com o estabelecido pelo Manual do Espaço Público da cidade, o que também incluiu a plantação de vegetação regional. Andar pelas calçadas que hoje rodeiam o projeto é mais agradável do que antes.

Finalmente, cabe ressaltar a permeabilidade que foi concebida para o projeto, que conecta com a sua praça interior e os seus acessos as três vias às quais o hotel volta as suas fachadas. Embora esses acessos sejam controlados, a possibilidade de atravessar o interior do quarteirão através do edifício beneficia as pessoas que circulam diariamente no bairro, especialmente aquelas que, a partir da parte inferior do vale, vão aos seus trabalhos na parte superior da ladeira leste pelas manhãs.
O Hotel Click Clack Medellín abre a discussão sobre a complexidade do caráter público na cidade contemporânea. Em conclusão, é importante deixar claro que de nenhuma maneira lugares como o primeiro andar do hotel são espaços públicos que, segundo a teoria, permitem o exercício da democracia ou da construção política. Também é importante ressaltar que o projeto não representa uma “perda do público”, como no caso do People’s Park e do Bryant Park, pois os espaços abertos correspondem a propriedades privadas cujo uso é vigiado e controlado de acordo com os interesses de seus proprietários. Em resumo, o uso de termos e eufemismos como lugares “semipúblicos” deformam a definição do que é autenticamente público, e diminuem a importância que lugares como Click Clack Medellín podem ter para com a cidade. Portanto, é importante destacar em que instâncias esses projetos são importantes para a cidade, e como o valor do caráter urbano, além do genuinamente público, pode aumentar a intensidade da vida urbana, promover o contato entre diferentes grupos e expandir a oferta programática de uma cidade.—