Infinito Vão, 90 anos de arquitetura brasileira é o título – inspirado na música e na voz do artista brasileiro Gilberto Gil – da exposição organizada na Casa da Arquitectura (CA) com curadoria de Fernando Serapião e Guilherme Wisnik.
O projeto precursor do Infinito Vão nasceu em 2016, quando a Casa da Arquitetura decidiu fundar o seu próprio arquivo para recolher e preservar diferentes coleções num determinado território e período de tempo. Como “ponte sobre o Atlântico”, o Infinito Vão é a primeira coleção composta exclusivamente por projetos não portugueses que mostram a diversidade da produção arquitetônica, da modernidade à atualidade, ao longo de 90 anos de arquitetura brasileira. A colecção é composta por 103 projectos e mais de 50 quilos de peças incluindo desenhos, fotografias, documentos, filmes, modelos, cerâmicas, entre outros. A “Colecção Brasileira de Arquitectura” tem dois objectivos principais: promover o trabalho de investigação sobre este tema e o de abrir toda a colecção aos investigadores e lançar as bases para futuras exposições na Casa da Arquitectura, para além da crescente galeria de “residentes” como os arquitectos Eduardo Souto de Moura, Paulo Mendes da Rocha, Álvaro Siza Vieira, Pedro Ramalho e João Álvaro Rocha, entre outros.
Na arquitetura o vão é algo que se vence, um desafio a superar. Reduzir a quantidade de apoios, expandir as lajes horizontalmente, lançar-se no vazio aéreo “abrindo uma imensa luz ao rés-do-chão”. Mas vão, em português, também se utiliza para designar um projeto ou uma ação que termina em fracasso: algo que foi feito em vão.
O verdadeiro amor é vão/ Estende-se infinito/ Imenso monolito/ Nossa arquitetura”, dizem os versos de Gilberto Gil em Drão, uma belíssima canção de separação amorosa. Perfeita compreensão da arquitetura como sutura daquilo que se perde, transformando, no trânsito do plano pessoal para o coletivo, a perda em desafio a ser vencido no espaço, longe do chão, na linha do infinito.
No Brasil, a modernização surgiu como um salto a ser dado por sobre o atraso do país. E, no caso da arquitetura, por sobre a ausência de duas tradições: a clássica, por um lado, e a artesanal, por outro. Salto abismal, diante da escala imensa do seu território. Desafio encampado por uma vanguarda estética ambiciosa, aliada a uma engenharia notável.
O Brasil é um país “condenado ao moderno”, afirmou o crítico Mário Pedrosa, entendendo essa condenação como uma libertação das tradições. Capacidade de transformar aquilo que poderia ser feito em vão na efetiva conquista cultural do vão livre; pois, para os arquitetos brasileiros, a palavra vão é quase sempre sinónimo de liberdade.
Texto curatorial de Fernando Serapião e Guilherme Wisnik.
“Infinito Vão – 90 Anos de Arquitetura Brasileira” congrega 90 projetos de autores fundamentais para a compreensão da produção brasileira, sendo metade referentes ao período moderno e as restantes ao período contemporâneo. Além dos desenhos e maquetes, a coleção possui cerca de 150 livros essenciais sobre o tema, que serão incorporados à biblioteca da Casa da Arquitectura. Para além do extenso programa paralelo que decorrerá em Portugal, também o Brasil irá receber em novembro, um programa de debates, mesas-redondas e momentos musicais alusivos. (ver site da CA).
“Infinito Vão, 90 anos de arquitetura brasileira” é organizado em seis módulos cronológicos:
1. DO GUARANI AO GUARANÁ 1924 – 1943
Quem inventou o Brasil? O navegante português Pedro Álvares Cabral, tal como descreve a marchinha carnavalesca de Lamartine Babo? Ou as artes modernas das décadas 1920 e 1930? Saltando do romantismo indígena e da escravidão para a cultura industrial e urbana, sobre uma base social ainda patriarcal, o Brasil reinventa-se sob a forma moderna. Das primeiras e escandalosas casas de Warchavchik em São Paulo, passando pelo “milagre” do Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro, até ao conjunto da Pampulha em Belo Horizonte transcorrem menos de 15 anos.
É o vertiginoso processo de “formação” da Arquitetura Moderna Brasileira, documentado na mostra Brazil Builds em 1943 no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. Com origens na viagem de Lucio Costa à cidade histórica de Diamantina em 1924, que o levou a admirar o racionalismo “pobre” da arquitetura civil colonial. Vernáculo luso-brasileiro que viria a ser identificado com o despojamento moderno.
2. A BASE É UMA SÓ 1943 – 1957
No período que vai da Pampulha até ao concurso para o Plano Piloto de Brasília, o Brasil vive o apogeu daquilo a que Tom Jobim, coautor de Samba de uma nota só, chamou uma “civilização de praia”. Realização quase utópica de uma geração de artistas que soube filtrar a batida do samba compondo uma nova estrutura harmónica, a Bossa Nova, e inventar uma arquitetura arrojada, de espaços amplos e perfis sinuosos, que sublima os esforços da construção, e seus grandes vãos, numa leveza aérea.
Em 1939, Carmen Miranda estreia-se em solo norte-americano no palco do auditório do Pavilhão Brasileiro na Feira de Nova Iorque, projetado por Niemeyer e Lucio Costa. No Brasil, novas cidades projetadas no Amapá e no Mato Grosso abrem caminho para Brasília. Cidade-oásis, traçada em forma de cruz no meio do cerrado, à moda cabralina, como uma refundação ritual do país. Reencenando, ao mesmo tempo, a violência da experiência colonial.
3. CONTRA OS CHAPADÕES MEU NARIZ 1943 – 1957
Nos anos 1960 tudo surge dissonante. Com o Golpe Militar de 1964 uma ditadura faz de Brasília a sua casa. No espírito anarcolibertário da contracultura, movido pelas críticas ao Movimento Moderno, as vanguardas artísticas acusam o desenvolvimentismo tecnocrático da arquitetura brasileira em nome de uma “estética da fome” terceiro-mundista. Na canção Tropicália, de Caetano Veloso, o “monumento no planalto central do país” torna-se a encarnação de um sonho sinistro.
E enquanto a arquitetura carioca declina, surge em São Paulo, o centro industrial do país, uma produção vigorosa, baseada no uso pleno do betão armado e aparente, na afirmação do peso, e na exploração formal das estruturas. Projeto cultural que, em consonância com a ideologia do Partido Comunista Brasileiro, entende a possibilidade da revolução política como fruto do desenvolvimento das forças produtivas nacionais. Clubes, escolas e até casas, nesse momento, são concebidos como obras de infraestrutura.
4. EU VI UM BRASIL NA TV 1969 – 1985
Em 1969, Artigas e Paulo Mendes da Rocha são presos pelo regime militar. Assiste-se ao fecho de universidades e revistas, censuram-se canções e movimentos artísticos mergulham na clandestinidade. Constroem-se hidroelétricas, estradas na Amazónia e cidades industriais, sob o mantra do “milagre económico”, de acordo com os versos de Bye bye Brasil, de Chico Buarque e Roberto Menescal.
Enquanto isso, os grandes centros urbanos do Sudeste incham e as favelas proliferam. No Norte, Severiano Porto cria uma arquitetura que combina a linguagem moderna com a tradição construtiva indígena. Em São Paulo, aproveitando o clima de distensão da ortodoxia moderna, Lina Bo Bardi, no Sesc Pompeia, e Eurico Prado Lopes e Luiz Telles, no Centro Cultural São Paulo, criam edifícios lúdicos, nos quais a didática estrutural já não é o centro da questão.
5. INTEIRO, E NÃO PELA METADE 1985 – 2001
“A gente não quer só dinheiro, a gente quer inteiro, e não pela metade”. O fragmento dos Titãs em Comida, no início do chamado rock nacional, exprime bem as aspirações de um país que retornava à democracia desejando implementar tanto projetos sociais quanto um novo modo de vida. Em resposta à opressão dos grandes conjuntos habitacionais feitos pela ditadura militar, o programa Favela-Bairro, no Rio de Janeiro, assume a cidade informal como um dado existente, procurando qualificá-la.
E, em São Paulo, organizações cooperativas criam caminhos de contraposição ao modelo das grandes empreiteiras e construtoras, empregando alvenaria de tijolo e formas coletivistas de trabalho. Sediado na Bahia, João Filgueiras Lima, o Lelé, adapta as “formas livres” de Niemeyer a um raciocínio de industrialização de componentes, criando fábricas manufatureiras para amparar a construção dos hospitais da rede Sarah Kubitschek por todo o Brasil.
Em Minas Gerais, a ironia pós-moderna ensaia sua aparição no país “condenado ao moderno”.
6. SENTIMENTO NA SOLA DO PÉ 2001 – 2018
“Aqui vagabundo guarda sentimento na sola do pé”. Com esse verso duro, os Racionais MCs descrevem a realidade violenta da vida nas grandes cidades do Brasil no novo milénio. Com a promulgação do Estatuto da Cidade e o projeto de escolas de estrutura pré-fabricada (Centros Educacionais Unificados – CEUs) pela prefeitura de São Paulo, que fecha o ciclo anterior, abre-se um período de otimismo sintetizado pela promessa de um “espetáculo do crescimento” económico e social, nas palavras do Presidente Lula no início do seu governo.
Nesse período, dá-se uma convivência contrastante entre uma valorização hedonista da arquitetura, em edifícios culturais e ligados ao mercado imobiliário, e um forte ativismo de coletivos e movimentos sociais, que insuflados pelo lema do “direito à cidade”, se contrapõem à especulação imobiliária, trabalham junto a ocupações de sem-abrigo, e batalham por novos espaços públicos. Tanto do ponto de vista político quanto urbanístico, o clima atual do Brasil é conflituoso.
Textos por Fernando Serapião e Guilherme Wisnik.
Fernando Serapião (1971) é fundador e editor da revista Monolito, publicada em São Paulo desde 2011 e premiada pela X Bienal Iberoamericana de Arquitectura (2016).
Guilherme Wisnik (1972) é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.